Oh, meu Deus, pensou, que trabalho tão cansativo escolhi!
Viajar, dia sim, dia não. É um trabalho muito mais irritante do que o trabalho
do escritório propriamente dito, e ainda por cima há ainda o desconforto de
andar sempre a viajar, preocupado com as ligações dos trens, com a cama e com
as refeições irregulares, com conhecimentos casuais, que são sempre novos e
nunca se tornam amigos íntimos.
[...] Se não tivesse de me aguentar, por causa dos meus pais,
há muito tempo que me teria despedido; iria ter com o patrão e lhe falar
exatamente o que penso dele. Havia de cair ao comprido em cima da secretária!
Também é um hábito esquisito, esse de se sentar a uma secretária em plano
elevado e falar para baixo para os empregados, tanto mais que eles têm de
aproximar-se bastante, porque o patrão é ruim de ouvido. Bem, ainda há uma
esperança; depois de ter economizado o suficiente para pagar o que os meus pais
lhe devem — o que deve levar outros cinco ou seis anos —, faço-o, com certeza.
Nessa altura, vou me libertar completamente.
[...] Eu bem sei que os caixeiros-viajantes não são muito bem
vistos no escritório. As pessoas pensam que eles levam uma vida estupenda e
ganham rios de dinheiro. Trata-se de um preconceito que nenhuma razão especial
leva a reconsiderar. Mas o senhor bem sabe que o caixeiro-viajante, que durante
todo o ano raramente está no escritório, é muitas vezes vítima de injustiças,
do azar e de queixas injustificadas, das quais normalmente nada sabe, a não ser
quando regressa, exausto das suas deslocações, e só nessa altura sofre
pessoalmente as suas funestas consequências; para elas, não consegue descobrir
as causas originais.
Kafka, Franz (1883-1924)
A Metamorfose. Universidade da Amazônia. Núcleo de
Educação à Distância
http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/ua00106a.pdf
(acesso em 04/08/2018)
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