Iman Malek (1976-) |
Coletânea de excertos sobre as várias faces do trabalho, escolhidos a partir de muitas e prazerosas leituras de textos literários e afins (com algumas ilustrações)
terça-feira, 28 de agosto de 2018
domingo, 26 de agosto de 2018
Eu não sou máquina
Foi em seguida, ao longo de várias semanas,
que aprendi a vida na linha de montagem. Neste primeiro dia, só fiz adivinhá-la:
através da tensão de um rosto, de um gesto de irritação, da ansiedade de um
olhar lançada na direção de uma carroçaria que vai chegando quando a precedente
ainda não está acabada. Agora, observando os operários, um depois do outro,
começo a notar uma certa diversidade naquilo que, à primeira vista,
assemelhava-se a uma mecânica humana homogênea: um, comedido e preciso, o
outro, nervoso e suando, os avanços, os atrasos, as minúsculas táticas de
posto, os que largam suas ferramentas entre cada carro e os que as conservam-na
mão, “os desligamentos”... E o perpétuo deslizar dos [carros] 2CV, lento e implacável,
que se constrói de minuto em minuto, a cada gesto, de uma operação a outra. O
furador. Os clarões. As brocas. O ferro queimado. [...]
Nos interstícios desse deslizar cinzento,
entrevejo uma guerra de usura da morte contra a vida e da vida contra a morte.
A morte: a engrenagem da linha de montagem, o imperturbável deslizar dos
carros, a repetição de gestos idênticos, a tarefa jamais terminada. Um carro
está pronto? O seguinte ainda não está e apresenta-se logo para ser soldado,
exatamente no lugar onde se acabou de soldar, rugoso exatamente onde se acabou
de polir. A solda está feita? Não, precisa ser feita. Feita definitivamente,
desta vez? Não, deve ser feita de novo, nunca está acabada- como se não
houvesse movimento, nem os gestos contassem, nem existissem mudanças, mas
apenas um simulacro absurdo de trabalho que se desfaz logo após terminado, sob
o efeito de uma maldição qualquer. E se nos dissermos que nada disso tem importância,
que basta habituar-se a fazer os mesmos gestos de uma maneira sempre idêntica,
num tempo sempre idêntico, aspirando unicamente à plácida perfeição da máquina?
Tentação da morte. Mas a vida revolta-se e resiste. O organismo resiste. Os músculos
resistem. Os nervos resistem. Alguma coisa, no corpo e na cabeças, defende-se
contra a repetição e o nada. A vida: um gesto mais rápido, um braço que cai
inoportunamente, um passo mais lento, um sopro de irregularidade, um movimento em
falso, o “avanço”, o “afundamento”, a tática do posto: tudo o que nesse irrisório
reduto de resistência contra o vazio eterno que é o posto de trabalho faz com
que ainda haja acontecimentos, embora minúsculos, que haja ainda um tempo,
mesmo se monstruosamente prolongado. Esta imperícia, este deslocamento supérfluo,
esta súbita aceleração, esta solda imperfeita, essa mão que a refaz duas vezes,
esta careta, este “desligamento”- é a vida que se aferra. Tudo o que, nos
homens da linha de montagem, grita silenciosamente: “eu não sou máquina”.
Linhart, Robert (1944- )
Greve na fábrica (L’établi). Tradução
de Miguel Arraes. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980. p 14-15
sábado, 25 de agosto de 2018
Bella ciao: canto de trabalho no arrozal
Alla mattina appena alzata
O bella ciao bella ciao bella ciao, ciao,ciao
Alla mattina appena alzata
In risaia mi tocca andar
E fra gli insetti e le zanzare
O bella ciao bella ciao bella ciao ciao ciao
E fra gli insetti e le zanzare
Un dur lavoro mi tocca far
Il capo in piedi col suo bastone
O bella ciao bella ciao bella ciao ciao ciao
Il capo in piedi col suo bastone
E noi curve a lavorar
O mamma mia o che tormento
O bella ciao bella ciao bella ciao ciao ciao
O mamma mia o che tormento
Io t'invoco ogni doman
Ma verrà un giorno che tutte quante
O bella ciao bella ciao bella ciao ciao ciao
Ma verrà un giorno che tutte quante
Lavoreremo in libertà.
https://www.youtube.com/watch?v=uAb52HOuv0w
quinta-feira, 23 de agosto de 2018
Salário por produção nos canaviais
Marcha pelos canaviais. Aqui, um feitor, de
camisa vermelha, balança portátil na cintura, caderneta na mão. Supervisiona
quatro ou cinco trabalhadores espalhados entre as canas, que cortam e amarram em
feixes. Pedimos para ver a caderneta. Ele mostra: deste lado, os nomes; do
outro lado, em frente, a produção diária. A página da véspera, no conjunto, a coisa
varia entre quinhentos e mil e quinhentos quilos por dia.
_ 2.250 nesta linha: por que este número tão
elevado?
_. É um sujeito que vem trabalhar com a neta.
_E aqui, 150. Por que tão pouco?
_. É um menino de seis anos: é o que ele faz
num dia. (150 quilos de cana; o salário é pela produção, este menino ganhou
ontem 8 cruzeiros)
Pelas cinco horas, diz o feitor, faz-se a
conta aqui mesmo. Mostra dois pretos que cortam cana a alguns passos de distância:
“estes dois aí são ‘da rua’ (da cidade)”. Os pretos param de trabalhar e um
responde às nossas perguntas:
_. Levanto-me às quatro da manhã para começar
aqui às seis. Sou ‘volante’. Trabalho um dia aqui, outro lá.
_. Por que vocês vêm da cidade para trabalhar
na cana? Não dá para arranjar outro trabalho?
Tem nada, diz ele com uma careta de desgosto.
Acende um cigarro e cala-se. O feitor mostra o feixe que ele acaba de amarrar: “se
ele fizer cem como este, terá os 1500 quilos”.
Afastamo-nos e ele recomeça a cortar cana.
Movimento lentos. Umidade tropical. Esta maneira arrastada do falar brasileiro.
Sente-se como que um esvaziamento interior. À nossa frente, perto da cana que
está sendo cortada, uma zona de incêndio. Na pista, ao pé de uma colina, um
caminhão azul está sendo carregado por quatro homens- vibração dos feixes de
cana. Murmúrio de um riacho no meio da terra queimada. Cheiro de cinza. O vento
carrega as cinzas finas, que penetram por toda a parte, até nas casas e nos
quartos. Ruído longínquo de vozes no canavial e da própria cana sendo cortada.
No fundo da paisagem, a “casa grande” rodeada de palmeiras, brancura quase
totalmente oculta ao olhar. À nossa volta, um horizonte de colinas. E nesta
umidade, estes barulhos moles: nesta depressão achatada, sempre, sempre, uma
enorme sensação de esvaziamento.
Linhart, Robert (1944- )
O açúcar e a fome: pesquisa nas regiões
açucareiras do nordeste brasileiro. Tradução de J. Silveira. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1981.p 16-17.
segunda-feira, 20 de agosto de 2018
O trabalho como metáfora
Consideremos agora outras metáforas
estruturais que são importantes em nossas vidas: O TRABALHO É UM RECURSO e O
TEMPO É UM RECURSO. Ambas se baseiam culturalmente em nossa experiência com
recursos materiais. Os recursos materiais são, caracteristicamente, matérias-primas
ou fontes de energia. Considera-se que ambos servem a determinados fins.
Pode-se usar os combustíveis para calefação, transportes ou como fontes de energia
para a manufatura de um produto final. As matérias-primas se transformam
diretamente em produtos. Em ambos os casos, se pode quantificar os recursos
materiais e a eles atribuir um valor. Nos dois casos, o que é importante para
cumprir o propósito concreto é o tipo de material que se opõe à parte ou
quantidade particular. Por exemplo, não importa quantos pedaços de carvão
aqueçam a casa de alguém, desde que sejam do tipo de carvão adequado. Nos dois
casos, o material se consome progressivamente, conforme vá cumprindo seu
objetivo. Em resumo:
Um recurso material
é um tipo de substância
se pode quantificar com bastante precisão
se pode lhe atribuir
um valor pela quantidade em cada
unidade
serve a um
determinado propósito
se vai consumindo progressivamente conforme
serve a esse propósito.
Tomemos um caso simples, no qual alguém
fabrica um produto a partir de uma matéria-prima. Efetua uma certa quantidade
de trabalho. Em geral, quanto mais trabalho se realiza mais produtos acabados
se obtém. Assumindo que isto seja correto, -que o trabalho é proporcional à
quantidade de produto- podemos atribuir um valor
ao trabalho em termos do tempo que custa produzir uma unidade do produto. O
modelo perfeito é a linha de montagem onde a matéria-prima entra por um
extremo, se realiza trabalho em etapas progressivas, cuja duração se fixa
segundo a velocidade da própria linha, e o produto sai pelo outro extremo. Isto
proporciona uma base para a metáfora O TRABALHO É UM RECURSO da seguinte forma:
O TRABALHO é um tipo de atividade (lembre-se:
UMA ATIVIDADE É UMA SUBSTÂNCIA)
se pode quantificar com bastante precisão (em
termos de tempo)
se pode lhe atribuir
um valor por unidade
serve a um fim determinado
se consome progressivamente conforme serve
a esse propósito
Uma vez que se pode quantificar o trabalho em
termos de tempo, e normalmente ele é assim quantificado, em uma sociedade
industrial temos as bases da metáfora O TEMPO É UM RECURSO:
O TEMPO é um tipo de substância (abstrata)
se pode quantificar com bastante precisão
se pode lhe atribuir
um valor por unidade
serve a um fim determinado
se consome progressivamente conforme serve
a esse propósito
Quando vivemos das metáforas O TRABALHO É UM
RECURSO e O TEMPO É UM RECURSO, como ocorre em nossa cultura, tendemos a não
vê-las como metáforas. Porém, como mostra nossa explicação de sua base na
experiência, as duas são metáforas estruturais básicas nas sociedades
industriais ocidentais.
Essas duas metáforas estruturais complexas
usam metáforas ontológicas simples. O TRABALHO É UM RECURSO utiliza UMA
ATIVIDADE É UMA SUBSTÂNCIA. O TEMPO É UM RECURSO utiliza O TEMPO É UMA
SUBSTÂNCIA. Estas duas metáforas de SUBSTÂNCIA permitem quantificar o trabalho e
o tempo, isto é, medi-los, concebê-los como algo que se consome
progressivamente e atribuir-lhes valores monetários; também nos permitem ver o
tempo e o trabalho como coisas que podem ser usadas para diversos fins.
Mas, O TRABALHO É UM RECURSO e O TEMPO É UM
RECURSO não são universais, sob nenhum pretexto. Emergiram de maneira natural
em nossa cultura devido à maneira pela qual vemos o trabalho, nossa paixão pela
quantificação e nossa obsessão por cumprir propósitos. As duas metáforas
destacam aqueles aspectos do trabalho e do tempo que são centralmente
importantes em nossa cultura. Ao fazê-lo, também desenfatizam ou ocultam certos
aspectos do trabalho e do tempo. Podemos ver o que ocultam examinando em que coisas
se concentram.
Ao considerar o trabalho como um tipo de atividade, a metáfora assume que
se pode identificar claramente o trabalho e se pode distingui-lo de coisas que
não são trabalho. Assume-se que podemos diferenciar o trabalho do jogo e a
atividade produtiva da não produtiva. Estas suposições, obviamente não se
ajustam à realidade em numerosos casos, com exceção talvez do caso das linhas
de montagem, trabalho forçado, etc. Considerar o trabalho meramente como um tipo de atividade, independente de quem
o realiza, como o experimenta e o que significa em sua vida, encobre a questão
de se o trabalho é significativo de maneira pessoal, satisfatória e humana.
A quantificação do trabalho em termos de
tempo, junto à visão de tempo como algo que serve a determinados fins, induz a
noção de tempo livre, que é paralela à noção de tempo de trabalho. Em uma
sociedade como a nossa, na qual não se considera a inatividade como um fim em
si mesmo, se desenvolveu uma indústria totalmente dedicada à cultura do tempo
livre. Como resultado, o tempo livre também se converte em um recurso, que se
deve gastar de uma maneira produtiva, utilizar com sabedoria, economizar, que
se pode desperdiçar, perder, etc. O que fica oculto nas metáforas de RECURSO
quando se aplicam ao trabalho e ao tempo é a forma pela qual nossos conceitos
de trabalho e tempo afetam nosso conceito de ócio, convertendo-o em algo
incrivelmente parecido ao trabalho.
As metáforas de RECURSO aplicadas ao trabalho
e ao tempo ocultam todo tipo de concepções de trabalho e de tempo que existem
em outras culturas e em algumas subculturas de nossa própria sociedade: a ideia
de que o trabalho pode ser um jogo, que a inatividade pode ser produtiva, de
que muito do que chamamos de trabalho ou não serve a um efeito claro ou não tem
nenhuma utilidade.
Lakoff, George (1941- ) e Johnson,
Mark (1949- )
Metáforas de la vida cotidiana.
Traducción de Carmen González Marín. Madrid: Ediciones Cátedra, 1991. p 105-108
(tradução minha)
domingo, 19 de agosto de 2018
Sobre o escravismo
O emprego de escravos tende a afastar homens
livres do trabalho, que é visto como ocupação indigna. Ao lado da classe
superior, que não trabalha, proprietária de escravos, forma-se uma classe média que também não trabalha. Devido
ao emprego de escravos, a sociedade é forçada a adotar uma estrutura de
trabalho relativamente simples, servindo-se de técnicas que podem ser
utilizadas pelos escravos e, que, por essa razão, tornam-se relativamente
impermeáveis à mudança, ao melhoramento e à adaptação a novas situações. A
reprodução do capital fica vinculada à reprodução dos escravos e, dessa maneira,
direta ou indiretamente, ao sucesso de campanhas militares, à produção de
reservas de escravos, e nunca é passível de cálculo no mesmo grau que numa
sociedade na qual não é a pessoa inteira que se compra por toda a vida, mas
serviços especiais de trabalho de indivíduos que, socialmente, são mais ou menos
livres.
Só contra esse pano de fundo podemos
compreender a importância, para todo o desenvolvimento da sociedade ocidental,
do fato de que, durante o lento crescimento da população na Idade Média, os
escravos estivessem ausentes ou desempenhassem apenas papel secundário. Desde o
início, por conseguinte, a sociedade foi colocada em um curso diferente do que
o adotado na Antiguidade romana. E ficou sujeita a regularidades diferentes. As
revoluções urbanas dos séculos XI e XII, a gradual liberação de trabalhadores
desalojados da terra – os burgueses- da submissão ao senhor feudal, constituíram
as primeiras manifestações desses fatores. Daí em diante, ocorreu a gradual
transformação do Ocidente numa sociedade onde um número sempre maior de pessoas
podia ganhar a vida através de ocupações. O papel muito pequeno desempenhado
pela importação de escravos e de mão de obra escrava dava aos trabalhadores,
mesmo como classe inferior, um grande peso social. Quanto mais prosseguia a interdependência
das pessoas e, por conseguinte, mais terra e sua produção eram incluídas na
circulação do comércio e da moeda, mais dependentes as classes superiores, que
não trabalhavam, os guerreiros, ou nobreza se tornavam das classes inferior e média,
que trabalhavam, e mais estas últimas ganhavam em poder social. A ascensão das
classes burguesas para a classe superior constituiu expressão desse modelo. De
forma exatamente oposta àquela por que, na sociedade escravista antiga, homens
livres da cidade eram expulsos da força de trabalho, na sociedade ocidental,
como resultado de homens livres, a crescente interdependência de todos
finalmente atraiu até mesmo membros das classes altas, que não trabalhavam, em números
sempre maiores, para a divisão do trabalho. O próprio desenvolvimento do
Ocidente, a evolução da moeda para aquela forma específica de “capital” que a
caracteriza, pressupõem a ausência de trabalho escravo e o desenvolvimento do
trabalho livre.
Elias, Norbert (1897-1990)
O processo civilizador. Formação do
estado e civilização. Volume 2. Tradução da versão inglesa de Ruy Jungmann. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1993.p 56.
Ninguém sabe tudo
Um é menos hábil, outro mais, para cada
trabalho. E não há ninguém que seja sábio em tudo.
Teógnis de Mégara (séc. VI
a.C.)
Hélade, antologia da cultura grega. Organizada
e traduzida do original por Maria Helena da Rocha Pereira. 5edição. Coimbra:
Instituto de Estudos Clássicos da Faculdade de Letras da Universidade de
Coimbra, 1990, p144.
sexta-feira, 17 de agosto de 2018
quinta-feira, 16 de agosto de 2018
A composição de uma poesia
Todos os poetas conheceram o tormento, o
espanto e o gozo. A admiração diante de uma página grandiosa de poesia nunca se
dirige à sua espantosa habilidade, mas à novidade da descoberta que contém.
Mesmo ao sentirmos um alvoroço de alegria ao encontrarmos ligados com
propriedade um adjetivo e um substantivo que antes nunca foram vistos juntos, o
que nos comove não é o espanto pela elegância da coisa, pela prontidão do
engenho, pela habilidade técnica do poeta, e sim a admiração pela nova
realidade trazida à luz.
Quanto a mim, a composição de uma poesia
acontece de um modo que eu nunca acreditaria – se a experiência não me fizesse
vê-la. Movendo-me em torno de uma situação sugestiva informe, vou bramindo de
mim para mim um pensamento, encarnado num ritmo aberto, sempre o mesmo. As
palavras diferentes e as diferentes ligações vão colorindo e caracterizando a
nova concentração musical. E o mais difícil está feito. Só falta agora voltar a
esses dois, três, quatro versos, já nesse estágio quase sempre definitivos e
iniciais e atormentá-los, interrogá-los, ajeitar-lhes os numerosos
desdobramentos, até alcançar um que fique bem. Nesse núcleo de que falei, está
a poesia toda por ser extraída. E cada verso que se acrescenta vai determinando
sempre melhor este núcleo e exclui um número sempre maior de enganos da
fantasia. Até o ponto em que todas as possibilidades intrínsecas do ponto de
partida se acham caracterizadas e desenvolvidas na medida das minhas forças;
aos poucos, ao correr da pena, passaram a formar-se novos núcleos rítmicos
identificáveis nas varias ‘imagens’ individuais da narrativa; e é de má
vontade, pois o interesse já está no fim, que chego ao último dos versos
conclusivos, verso quase sempre descontraído, descansado, ligado ao início e a
recapitular, por alusão, os vários núcleos. Seria a cristalização de Stendhal? Tenho
diante de mim um conjunto rítmico – cheio de cores, de mudanças, de impulsos e
descontração –onde os vários momentos de descoberta, de avanço – os núcleos,
enfim- se alternam de lugar, se iluminam, ativados perenemente pelo sangue rítmico
que flui por toda parte. Depois, fico fumando e tento pensar em outra coisa,
mas, estimulado pelo segredo, acabo por sorrir.
Pavese, Cesar (1908
-1950)
O ofício de viver, diário de
1935-1950. Tradução de Homero Freitas de Andrade. Editora Bertrand Brasil S.A.,
1988.
quarta-feira, 15 de agosto de 2018
terça-feira, 14 de agosto de 2018
segunda-feira, 13 de agosto de 2018
domingo, 12 de agosto de 2018
Roteiro para duas mãos
Precisavam de alguém que
datilografasse rápido; foi assim que emprestei as minhas mãos. O filme, um
longa com mais de duas horas de duração, era sobre a vida de Jack Kerouac, as
viagens que ele fez pelos Estados Unidos no fim dos anos 1940 e como escreveu o
livro em que elas são contadas. Além de ter atravessado o território americano
de costa a costa, você sabe, e descido até o México, sozinho ou na companhia de
Neal Cassady, Kerouac ficou famoso por ter datilografado On the road em apenas três semanas, em um único rolo de papel,
durante uma espécie de transe. “Estamos atrás de uma batida ágil, frenética “, disse
o produtor ao me entrevistar, “uma batida que dê conta da vibração do Kerouac,
do ritmo feroz e ao mesmo tempo maleável que só as mãos dele conseguiam ter.” A
conversa foi no escritório da produtora. Fiquei olhando para o sujeito, sem
entender bem o alcance daquela descrição. Na época -estávamos em 2000- eu não
tinha lido quase nada de Kerouac, mas fiquei animado de cara. Eles acertaram em
cheio. Minhas mãos estavam prontas para isso. Minhas mãos, até então
desperdiçadas, com seus seiscentos toques por minuto.
[...] Nas primeira vezes em que
gravei, o diretor me interrompia a todo instante. “Nunca vi nada igual”, dizia,
invadindo a cena. “Mas rapidez aqui não basta. Seus dedos estão duros demais,
calibrados demais, você está parecendo um soldado...Tem que amolecer esse punho,
rapaz.” Então chamava o assistente, pedia uma cópia do texto e fazia ali mesmo
umas marcações, onde eu devia mudar de ritmo. ”Você tem de criar uma oscilação,
uma melodia”. E balançava os dedos no ar, simulando o andamento.
[...] Dizem que Kerouac, nos
melhores dias, chegava a bater quinze mil palavras, trabalhando durante seis
horas, o que dá mais ou menos trezentos toques por minuto. Imagino que ele
pudesse alcançar os quinhentos toques, bem menos do que eu era capaz, mas, como
eu estava meio enferrujado, a gente acabava ficando no mesmo nível. Eu gravava
uma música dos anos 1950, de alguém que Kerouac ouvia, Duke Ellington ou George
Shearing, por exemplo, botava para tocar no walkman, mergulhava naquele som. Kerouac
considerava Shearing um deus. Hoje, vendo o modo como Shearing deslizava os
dedos de cego pelo piano, estou certo que Kerouac se inspirava nele para bater à
máquina, tentando injetar nas tônicas a batida do jazz.
Castro, Marcílio França ( 1967- )
Histórias naturais: ficções.
São Paulo: Companhia das Letras, 2016. p 13-15
terça-feira, 7 de agosto de 2018
Um dogma desastroso
Uma estranha loucura
apossa-se das classes operárias das nações onde impera a civilização
capitalista. Esta loucura tem como consequência as misérias individuais e
sociais que, há dois séculos, tortura a triste humanidade. Esta loucura é o
amor pelo trabalho, a paixão moribunda pelo trabalho, levada até o esgotamento das
forças vitais do indvíduo e de sua prole.
Lafargue, Paul
(1842-1911)
O direito à preguiça.
Tradução de J. Teixeira Coelho. São Paulo: Hucitec; Unesp, 1999. p 63.
sábado, 4 de agosto de 2018
Tecelões
O meu trabalho e de todos os tecelões é duma
forma igual; nós trabalhamos umas oito horas direto, sem intervalo de descanso.
Antes, eu trabalhava com doze máquinas, depois passaram para dezoito, agora tô
com vinte e quatro; vai uma distância daqui até lá na outra esquina. Tem gente
que está com trinta teares. Então, com esse aumento bárbaro de máquinas, a
gente não para, a gente come andando, come a merenda que levamos andando,
sanduíche, café, olhando a máquina que pára; a gente deixa assim em cima duma
caixinha que tem, ou d’uma máquina que tiver parada, e vai lá e toca aquela
máquina que parou, vai lá botar ela pra rodar, volta pra cima e olhando as
outras, entendeu? A gente, quando há necessidade de ir no banheiro, então a
gente vai, o máximo que pode passar lá fora é cinco minutos, três minutos, não
pode passar mais do que isso. Isso o trabalho mesmo exige que nós fazemos isso,
porque nós ganhamos pela produção e não podemos deixar o tear, porque não vai
ficar ninguém lá tomando conta...E a responsabilidade é demais, demais mesmo,
perfeição do pano, olhar, conhecer o defeito da máquina quando dá falha no
tecido, no pano. O fio arrebenta muito, muito mesmo, a gente não consegue, sai
d’uma, pega na outra, num anda um pouquinho torna a arrebentar, o tear para
mesmo.
Cândido Pereira, Vera Maria
Cândido Pereira, Vera Maria
O coração da fábrica: estudo de
casos entre operários têxteis. Rio de
Janeiro:Editora Campus,1979.
Seu talento havia morrido
Ele perdera a magia. O impulso se esgotara.
Ele nunca havia fracassado no teatro, tudo que fizera sempre fora vigoroso e
bem-sucedido e então aconteceu esta coisa terrível: ele não conseguia
representar. Subir ao palco tornou-se uma agonia. Em vez da certeza de que
teria um desempenho maravilhoso, sabia que ia fracassar. A coisa aconteceu três
vezes seguidas, e na última vez ninguém mostrou interesse, ninguém foi. Ele não
conseguia se comunicar com a plateia. Seu talento havia morrido.
Roth, Philip ( 1933-2018)
A humilhação. Tradução de Paulo
Henriques Britto. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. p7.
Caixeiro-viajante
Oh, meu Deus, pensou, que trabalho tão cansativo escolhi!
Viajar, dia sim, dia não. É um trabalho muito mais irritante do que o trabalho
do escritório propriamente dito, e ainda por cima há ainda o desconforto de
andar sempre a viajar, preocupado com as ligações dos trens, com a cama e com
as refeições irregulares, com conhecimentos casuais, que são sempre novos e
nunca se tornam amigos íntimos.
[...] Se não tivesse de me aguentar, por causa dos meus pais,
há muito tempo que me teria despedido; iria ter com o patrão e lhe falar
exatamente o que penso dele. Havia de cair ao comprido em cima da secretária!
Também é um hábito esquisito, esse de se sentar a uma secretária em plano
elevado e falar para baixo para os empregados, tanto mais que eles têm de
aproximar-se bastante, porque o patrão é ruim de ouvido. Bem, ainda há uma
esperança; depois de ter economizado o suficiente para pagar o que os meus pais
lhe devem — o que deve levar outros cinco ou seis anos —, faço-o, com certeza.
Nessa altura, vou me libertar completamente.
[...] Eu bem sei que os caixeiros-viajantes não são muito bem
vistos no escritório. As pessoas pensam que eles levam uma vida estupenda e
ganham rios de dinheiro. Trata-se de um preconceito que nenhuma razão especial
leva a reconsiderar. Mas o senhor bem sabe que o caixeiro-viajante, que durante
todo o ano raramente está no escritório, é muitas vezes vítima de injustiças,
do azar e de queixas injustificadas, das quais normalmente nada sabe, a não ser
quando regressa, exausto das suas deslocações, e só nessa altura sofre
pessoalmente as suas funestas consequências; para elas, não consegue descobrir
as causas originais.
Kafka, Franz (1883-1924)
A Metamorfose. Universidade da Amazônia. Núcleo de
Educação à Distância
http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/ua00106a.pdf
(acesso em 04/08/2018)
quinta-feira, 2 de agosto de 2018
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