sexta-feira, 11 de janeiro de 2019

O filme A mais bela



[O filme “A mais bela”] trata de um corpo de voluntários formado por jovens operárias. O cenário é uma fábrica de lentes militares que pertence à empresa Nippon Kogaku, na cidade de Hiratsuka. As jovens são empregadas na produção de lentes de precisão. Quando recebi a direção desse projeto, decidi que tentaria fazê-lo em estilo de semi-documentário. Comecei por libertar as jovens atrizes de tudo quanto tivessem adquirido - física e emocionalmente - que cheirasse à teatralidade. Os vestígios de maquiagem, o esnobismo, as afetações do palco, aquela particular falta de espontaneidade própria dos atores, tudo isso tinha de desaparecer. Queria que retornassem à condição original de jovens comuns. Assim, comecei exercícios de corrida e daí passei ao voleibol. Então, pedi que formassem uma banda de pífanos e tambores, treinassem marchas e tocar música e finalmente desfilassem pelas ruas. As atrizes pareciam não fazer objeção a correr e a jogar voleibol, mas se sentiam ultrajadas com a mera ideia de fazer algo que chamasse tanto a atenção como marchar pelas ruas com uma banda de pífanos. Tive de enfrentar uma forte resistência a essa solicitação. Mas, com a repetição, elas se acostumaram até mesmo a desfilar. Sua maquiagem perdeu a artificialidade e, à primeira vista e mesmo a um olhar mais atento, elas pareciam em todos os aspectos um saudável e ativo grupo de jovens comuns. Peguei então esse grupo e o coloquei no dormitório da empresa Nippon Kogaku. Enviei várias das jovens a cada uma das seções da fábrica e elas começaram a levar a vida de autênticas operárias, cumprindo a mesma carga horária.
Refletindo agora sobre meus atos, devo concluir que eu era um diretor terrivelmente severo. É de fato surpreendente como todos faziam, sem questionar, o que eu lhes pedia para fazer. Mas conforme o espírito predominante na época da guerra, todos recebiam ordens como algo natural. Eu não estava conscientemente pedindo a essas jovens que se comportassem de modo patriótico e impessoal. O fato é que o tema do filme é o auto sacrifício no servir a pátria e, se não as tivéssemos preparado para issso dessa forma, as personagens teriam sido como recortes de papelão, privados de qualquer realidade. A atriz Takako Ine representava a mãe no dormitório para as garotas da fábrica e sua capacidade natural de demonstrar afeição materna tornou-a muito popular entre as jovens atrizes; sua presença foi-me de grande ajuda.
Ao mesmo tempo que o elenco entrou no dormitório feminino, a equipe técnica e eu nos mudamos para o dormitório masculino. Nossas manhãs começavam sempre com as melodias dos pífanos e dos tambores. Quando ouvíamos essa música, pulávamos da cama, vestíamos nossas roupas e corríamos para o cruzamento da ferrovia de Hiratsuka. Ao longo da estrada coberta de geada branca vinha a banda de pífanos e tambores. Todas as jovens usavam faixas na cabeça e tocavam uma marcha simples mas inspiradora. Enquanto tocavam os instrumentos, olhavam-nos com o canto dos olhos ao passarem por nós, atravessavam o trilho da estrada e marchavam para o portão principal da fábrica Nippon Kogaku. Nós as víamos sumir na distância e então voltávamos ao dormitório para o café da manhã. Após a refeição, reuníamos o equipamento e íamos para a fábrica filmar.
O espírito com que filmávamos era exatamente o mesmo com que realizaríamos um documentário. Naturalmente, as jovens em cada seção da fábrica diziam as falas do drama que estavam no roteiro, mas em lugar de prestar atenção à câmera elas se mantinham completamente absorvidas em executar o trabalho fabril que estavam aprendendo e em controlar o funcionamento das máquinas. Em seus movimentos e nas expressões concentradas, quase não havia sinal de falta de espontaneidade comum aos atores; havia apenas a vitalidade e a beleza das pessoas no trabalho.





Kurosawa, Akira (1910-1998)


Relato autobiográfico. Tradução de Rosane Barguil Pavam et al. São Paulo: Estação Liberdade, 1990, p 197-199


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