segunda-feira, 28 de janeiro de 2019

Minhas mãos não eram brancas nem macias


Já disse, era empregada. Nem era empregada de verdade, só ajudante de cozinha, serviçal. Porque a casa era grande, meu caro, uma casa nobre de verdade. Eu poderia contar para você muitas coisas sobre a casa e os costumes, a maneira como eles viviam, comiam, se entediavam, conversavam. Durante muito tempo eu andei nas pontas dos pés pela casa, não tinha coragem nem de pisar, de tanto medo que eu sentia. É verdade, passaram anos antes que me deixassem entrar nos quartos internos da casa, porque eu não sabia nada de como devia me comportar numa casa tão fina. Tive de aprender. Eu só podia circular pelos banheiros que ficavam fora da casa. Na cozinha também não deixavam que me aproximasse dos alimentos, só podia descascar batatas ou ajudar a lavar louça...Sabe, como se minha mão estivesse imunda o tempo todo. E eles tinham de evitar que eu sujasse o que pegasse nas mãos. Mas talvez não fossem eles que pensassem assim...a patroa e a cozinheira, não. Eu sentia que naquela casa bonita minhas mãos não eram limpas como deveriam ser...Senti isso durante muito tempo. Minhas mãos ainda eram vermelhas, enrugadas, cheias de bolhas e ásperas. Não eram brancas e macias como agora. Eles não disseram nada de ruim sobre minhas mãos. Só que eu não tinha coragem de mexer em nada, porque tinha medo que ficasse uma marca das minhas mãos nas coisas... Na comida eu também não tinha coragem de mexer. Sabe, como os médicos que amarram uma gaze fina no rosto quando operam porque receiam que o hálito deles contamine...eu prendia assim a respiração quando me debruçava sobre as coisas que eles usavam...sobre o copo em que bebiam ou o travesseiro em que dormiam...Sim, pode rir de mim, quando eu limpava as xícaras da cristaleira, eu também tomava cuidado para que a xícara bonita, branca, não ficasse mais suja pelo contato com as minhas mãos. O medo, o cuidado, durou por muito tempo depois que cheguei na casa fina.


Márai, Sandor (1900 -1989)

De verdade. Tradução de Paulo Schiller. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. p 260-261


Nenhum comentário:

Postar um comentário