Já disse, era empregada. Nem era empregada de
verdade, só ajudante de cozinha, serviçal. Porque a casa era grande, meu caro,
uma casa nobre de verdade. Eu poderia contar para você muitas coisas sobre a
casa e os costumes, a maneira como eles viviam, comiam, se entediavam,
conversavam. Durante muito tempo eu andei nas pontas dos pés pela casa, não tinha
coragem nem de pisar, de tanto medo que eu sentia. É verdade, passaram anos
antes que me deixassem entrar nos quartos internos da casa, porque eu não sabia
nada de como devia me comportar numa casa tão fina. Tive de aprender. Eu só
podia circular pelos banheiros que ficavam fora da casa. Na cozinha também não
deixavam que me aproximasse dos alimentos, só podia descascar batatas ou ajudar
a lavar louça...Sabe, como se minha mão estivesse imunda o tempo todo. E eles
tinham de evitar que eu sujasse o que pegasse nas mãos. Mas talvez não fossem
eles que pensassem assim...a patroa e a cozinheira, não. Eu sentia que naquela
casa bonita minhas mãos não eram limpas como deveriam ser...Senti isso durante
muito tempo. Minhas mãos ainda eram vermelhas, enrugadas, cheias de bolhas e ásperas.
Não eram brancas e macias como agora. Eles não disseram nada de ruim sobre
minhas mãos. Só que eu não tinha coragem de mexer em nada, porque tinha medo
que ficasse uma marca das minhas mãos nas coisas... Na comida eu também não
tinha coragem de mexer. Sabe, como os médicos que amarram uma gaze fina no
rosto quando operam porque receiam que o hálito deles contamine...eu prendia
assim a respiração quando me debruçava sobre as coisas que eles usavam...sobre
o copo em que bebiam ou o travesseiro em que dormiam...Sim, pode rir de mim,
quando eu limpava as xícaras da cristaleira, eu também tomava cuidado para que
a xícara bonita, branca, não ficasse mais suja pelo contato com as minhas mãos.
O medo, o cuidado, durou por muito tempo depois que cheguei na casa fina.
Márai, Sandor (1900 -1989)
De verdade. Tradução de Paulo Schiller. São
Paulo: Companhia das Letras, 2008. p 260-261
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