Acordei muito cedo. O galo não cantou e eu
estava em meu quarto de dormir, uma caixinha que chamam de quarto, quente como
a brasa da fogueira. Levantei passando a mão no rosto, o terço no chão, deve
ter caído enquanto dormia, minha mão pendia ao lado da cama e o calor me fez
levantar. Abri a porta para que corresse algum vento no quartinho: “vem, vento,
corre por aqui”, foi a primeira oração da manhã. Fui para o banheiro lavar o
rosto, banheirinho de azulejos velhos e descorados de tanta lavagem, aquele
banheiro que não fica longe da cozinha. Lavei meu rosto, vi minhas mãos
ressequidas e fui preparar o café, acordada, mas com um sono dentro de mim. Na
chaleira já havia água porque me lembro de tê-la enchido na noite anterior. Ah,
noite tão curta foi essa noite entre os latidos dos cães de orelhas putrefatas
e o morno do tempo em meu quarto de dormir. A maré de água agora ondulava solta
em meu ouvido, escuto a maré, a maré que ondulava em minha casa quando eu era
menina, a maré onde eu me banhava nos fins de tarde. Ah, tarde! Que saudade eu
tenho da tarde quando ainda nem nasceu o dia, e sacudi a cabeça para que a
lembrança da maré fosse morrer em outro canto, mas a maré continuava, ondulava
estranha, mar, mar, e a água continuava a ondular viva em meus ouvidos. Cheguei
perto do cobogó da área de serviço, vendo a rua entre os quadrados, e vi que
todos dormiam ainda, a maré estava muito viva, e, como ela não parava com os marulhos,
voltei ao fogão. Para que é essa chaleira, mesmo? Não consigo lembrar. Alguém pediu
chá, não, não, é a água do café, mas de onde vem esse som de água que
movimenta a maré no fundo de minha casa, mar, mar, no fundo de minha alma, e a
porta do banheiro estava aberta, e a torneira estava aberta, fechei a torneira
e o som da maré se fechou com ela. Havia esquecido a torneira aberta. Voltei
para o fogão porque o dia está nascendo, a luz alcança a cozinha e a água vai
chiando na chaleira. Pego o pote de café moído e me ponho a coar. Fecho a
garrafa térmica. Daqui a pouco a dona e o senhor acordam...Os filhos... Olho
para a folhinha na parede, é “Sexta-Feira da Paixão”, “louvado seja Nosso
Senhor” minha mãe me diz, a voz de minha mãe por um minuto ocupa o lugar do som
da maré, e eu me sento à mesa da cozinha, olho para a porta esperando que alguém
chegue para pedir algo, pedem um copo d’água, pedem um prato e uma faca para
cortar uma fruta, pedem para que eu lave o prato, pedem os sapatos que estão na
área de serviço, pedem que eu diga onde está o casaco, pedem uma toalha de
prato, pedem uma vela e uma reza, pedem que eu varra os farelos de algo no chão,
pedem que eu passeie com o cão...Meus olhos estão voltados para a porta e minha
mão alisa a toalha da mesa. Estou sentada e minha mão alcança um papel dobrado
de duas notas de dinheiro. Olho o papel e as letras, olho para o dinheiro,
lembro que a dona deixou o dinheiro e a nota para comprar os peixe e os
temperos na feira para preparar o almoço. Vinte e muitos anos nesta casa. Ainda
bem que não me esqueci. Preciso me apressar para que o almoço não fique pronto
tarde e a dona não me chame a atenção.
Itamar Vieira Junior (1979-)
Doramar ou a odisseia: Histórias. São Paulo:
Todavia, 2021, p 124-125.