quinta-feira, 29 de julho de 2021

Oleiros

 

Janela sobre a memória

À beira-mar de outro mar, outro oleiro se aposenta, em seus anos finais.

Seus olhos se cobrem de névoa, suas mãos tremem: chegou a hora do adeus. Então acontece a cerimônia de iniciação: o oleiro velho oferece ao oleiro jovem sua melhor peça. Assim manda a tradição, entre os índios do noroeste da América: o artista que se despede entrega sua obra-prima ao artista que se apresenta.

E o oleiro jovem não guarda esta peça perfeita para contemplá-la e admirá-la: a espatifa contra o solo, a quebra em mil pedacinhos, recolhe os pedacinhos e os incorpora à sua própria argila.

 

 

                                                                                                                    Eduardo Galeano (1940-2015)

 

Amares, tradução de Eric Nepomuceno, Sergio Faraco, Sérgio Karam. Porto Alegre: L&PM, 2019, p. 113.

O acendedor de lampiões

Lá vem o acendedor de lampiões da rua!

Esse mesmo que vem infatigavelmente

Parodiar o sol e associar-se à lua

Quando a sombra da noite enegrece o poente!

 

Um, dois, três lampiões, acende e continua

Outros mais a acender imperturbavelmente,

À medida que a noite aos poucos se acentua

E a palidez da lua apenas se pressente.

 

Triste ironia atroz que o senso humano irrita:_

Ele que doira a noite e ilumina a cidade,

Talvez não tenha luz na choupana em que habita.

 

Tanta gente também nos outros insinua

Crenças, religiões, amor, felicidade,

Como este acendedor de lampiões da rua!

 

 

 

 

Jorge de Lima (1893-1953)

 

Poemas negros. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2016. p 110.

Trabalhadores de pedreira

Daí à pedreira restavam apenas uns cinquenta passos e o chão era já todo coberto por uma farinha de pedra moída que sujava como a cal.

Aqui, ali, por toda a parte, encontravam-se trabalhadores, uns ao sol, outros debaixo de pequenas barracas feitas de lona ou de folhas de palmeira. De um lado cunhavam pedra cantando; de outro a quebravam a picareta, de outro afeiçoavam lajedos a ponta de picão; mais adiante faziam paralelepípedos a escopro e macete. E todo aquele retintim de ferramentas, e o martelar da forja, e o coro dos que lá em cima brocavam a rocha para lançar-lhe fogo, e a surda zoada ao longe, que vinha do cortiço, como de uma aldeia alarmada; tudo dava a ideia de uma atividade feroz, de uma luta de vingança e de ódio. Aqueles homens gotejantes de suor, bêbados de calor, desvairados de insolação, a quebrarem, a espicaçarem, a torturarem a pedra pareciam um punhado de demônios revoltados na sua impotência contra o impassível gigante que os contemplava com desprezo, imperturbável a todos os golpes e a todos os tiros que lhe desfechavam no dorso, deixando sem um gemido que lhe abrissem as entranhas de granito.

 

Aluísio Azevedo (1857-1913)

 

 

Vozes da ficção: narrativas do mundo do trabalho/Claudia de Arruda Campo, Enid Yatsuda Frederico e outras (organizadores). São Paulo: Expressão Popular, 2011, p 23.

segunda-feira, 19 de julho de 2021

Balada das lavadeiras

Lava, lava, lavadeira

A roupa de teu patrão

Sua camisa de linho

Sua meia-confecção

Enxágua seu lenço sujo

Todo sujo de batom

Põe anil no dito cujo

Pro trabalho ficar bom.

 

 

 

Vinícius de Moraes (1913-1980)

 

Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1998, p556.

quinta-feira, 8 de julho de 2021

Doramar

 

Acordei muito cedo. O galo não cantou e eu estava em meu quarto de dormir, uma caixinha que chamam de quarto, quente como a brasa da fogueira. Levantei passando a mão no rosto, o terço no chão, deve ter caído enquanto dormia, minha mão pendia ao lado da cama e o calor me fez levantar. Abri a porta para que corresse algum vento no quartinho: “vem, vento, corre por aqui”, foi a primeira oração da manhã. Fui para o banheiro lavar o rosto, banheirinho de azulejos velhos e descorados de tanta lavagem, aquele banheiro que não fica longe da cozinha. Lavei meu rosto, vi minhas mãos ressequidas e fui preparar o café, acordada, mas com um sono dentro de mim. Na chaleira já havia água porque me lembro de tê-la enchido na noite anterior. Ah, noite tão curta foi essa noite entre os latidos dos cães de orelhas putrefatas e o morno do tempo em meu quarto de dormir. A maré de água agora ondulava solta em meu ouvido, escuto a maré, a maré que ondulava em minha casa quando eu era menina, a maré onde eu me banhava nos fins de tarde. Ah, tarde! Que saudade eu tenho da tarde quando ainda nem nasceu o dia, e sacudi a cabeça para que a lembrança da maré fosse morrer em outro canto, mas a maré continuava, ondulava estranha, mar, mar, e a água continuava a ondular viva em meus ouvidos. Cheguei perto do cobogó da área de serviço, vendo a rua entre os quadrados, e vi que todos dormiam ainda, a maré estava muito viva, e, como ela não parava com os marulhos, voltei ao fogão. Para que é essa chaleira, mesmo? Não consigo lembrar. Alguém pediu chá, não, não, é a água do café, mas de onde vem esse som de água que movimenta a maré no fundo de minha casa, mar, mar, no fundo de minha alma, e a porta do banheiro estava aberta, e a torneira estava aberta, fechei a torneira e o som da maré se fechou com ela. Havia esquecido a torneira aberta. Voltei para o fogão porque o dia está nascendo, a luz alcança a cozinha e a água vai chiando na chaleira. Pego o pote de café moído e me ponho a coar. Fecho a garrafa térmica. Daqui a pouco a dona e o senhor acordam...Os filhos... Olho para a folhinha na parede, é “Sexta-Feira da Paixão”, “louvado seja Nosso Senhor” minha mãe me diz, a voz de minha mãe por um minuto ocupa o lugar do som da maré, e eu me sento à mesa da cozinha, olho para a porta esperando que alguém chegue para pedir algo, pedem um copo d’água, pedem um prato e uma faca para cortar uma fruta, pedem para que eu lave o prato, pedem os sapatos que estão na área de serviço, pedem que eu diga onde está o casaco, pedem uma toalha de prato, pedem uma vela e uma reza, pedem que eu varra os farelos de algo no chão, pedem que eu passeie com o cão...Meus olhos estão voltados para a porta e minha mão alisa a toalha da mesa. Estou sentada e minha mão alcança um papel dobrado de duas notas de dinheiro. Olho o papel e as letras, olho para o dinheiro, lembro que a dona deixou o dinheiro e a nota para comprar os peixe e os temperos na feira para preparar o almoço. Vinte e muitos anos nesta casa. Ainda bem que não me esqueci. Preciso me apressar para que o almoço não fique pronto tarde e a dona não me chame a atenção.

 

Itamar Vieira Junior (1979-)

 

Doramar ou a odisseia: Histórias. São Paulo: Todavia, 2021, p 124-125.

Verbete “trabalho” nos índices analíticos de “O Capital”

1- Necessidade natural eterna 
2- Função normal da vida 
3- Processo entre o homem e a natureza 
4- Caráter social do 
5- Diretamente coletivizado 
6- Duplo caráter do 
7- Abstrato (cria valor) 
8- Concreto (útil) 
9- Substância do valor 
10- Não tem nenhum valor
11- Simples social médio 
12- Complexo (superior, potenciado) 
13- Vivo 
14- Anterior (pretérito, morto) 
15- Produtivo 
16- Improdutivo 
17- Manual e intelectual 
18- Necessário 
19- Excedente 
20- Materializado 
21- Forçado 
22- Noturno, sazonal 

 Karl Marx (1818-1883)

 O Capital, Livros 1e2 Tradução de Reginaldo Sant’Anna. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1971,