segunda-feira, 28 de janeiro de 2019

Eu era o patrão


eu, o que eu fazia...? Eu era o patrão. Sentava-me em meu lugar como um guarda-noturno. Tratava de ser respeitoso, humano, justo. Ao mesmo tempo tratava também, naturalmente, de receber da fábrica e dos empregados tudo a que eu tinha direito em termos de lucros e vantagens. Observava com muita pontualidade minha disciplina de trabalho na fábrica, com mais pontualidade que os empregados e funcionários do escritório. Assim me esforçava por servir à fortuna e à receita destinada a mim. Porém por dentro tudo era assustadoramente vazio...O que eu podia fazer na fábrica? Aceitava ou rejeitava um projeto, implantava uma nova organização do trabalho, buscava novos mercados para a produção. E a grande receita me dava alegria?...Alegria não é a palavra apropriada. Eu me satisfazia por poder cumprir as obrigações perante o mundo, o dinheiro possibilitava que eu não tivesse um partido político de uma forma honesta, digna, generosa e responsável. No mundo dos negócios eu era citado como exemplo de homem de negócios pontual. Sabia ser respeitoso, conseguia prover de pão, e mais que pão, muita gente... É bom poder dar. Eu apenas não alcançava uma alegria verdadeira. Vivia com conforto, meus dias passavam com honestidade. Não era inativo, ao menos aos olhos do mundo não era inútil, nem preguiçoso. Eu era o bom patrão: assim as pessoas falavam de mim também na fábrica. Entretanto isso tudo não me dava nada, era apenas um modo sofrido, preocupante, responsável de passar o tempo.



Márai, Sandor (1900 -1989)

De verdade. Tradução de Paulo Schiller. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. p 206-207.


Minhas mãos não eram brancas nem macias


Já disse, era empregada. Nem era empregada de verdade, só ajudante de cozinha, serviçal. Porque a casa era grande, meu caro, uma casa nobre de verdade. Eu poderia contar para você muitas coisas sobre a casa e os costumes, a maneira como eles viviam, comiam, se entediavam, conversavam. Durante muito tempo eu andei nas pontas dos pés pela casa, não tinha coragem nem de pisar, de tanto medo que eu sentia. É verdade, passaram anos antes que me deixassem entrar nos quartos internos da casa, porque eu não sabia nada de como devia me comportar numa casa tão fina. Tive de aprender. Eu só podia circular pelos banheiros que ficavam fora da casa. Na cozinha também não deixavam que me aproximasse dos alimentos, só podia descascar batatas ou ajudar a lavar louça...Sabe, como se minha mão estivesse imunda o tempo todo. E eles tinham de evitar que eu sujasse o que pegasse nas mãos. Mas talvez não fossem eles que pensassem assim...a patroa e a cozinheira, não. Eu sentia que naquela casa bonita minhas mãos não eram limpas como deveriam ser...Senti isso durante muito tempo. Minhas mãos ainda eram vermelhas, enrugadas, cheias de bolhas e ásperas. Não eram brancas e macias como agora. Eles não disseram nada de ruim sobre minhas mãos. Só que eu não tinha coragem de mexer em nada, porque tinha medo que ficasse uma marca das minhas mãos nas coisas... Na comida eu também não tinha coragem de mexer. Sabe, como os médicos que amarram uma gaze fina no rosto quando operam porque receiam que o hálito deles contamine...eu prendia assim a respiração quando me debruçava sobre as coisas que eles usavam...sobre o copo em que bebiam ou o travesseiro em que dormiam...Sim, pode rir de mim, quando eu limpava as xícaras da cristaleira, eu também tomava cuidado para que a xícara bonita, branca, não ficasse mais suja pelo contato com as minhas mãos. O medo, o cuidado, durou por muito tempo depois que cheguei na casa fina.


Márai, Sandor (1900 -1989)

De verdade. Tradução de Paulo Schiller. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. p 260-261


sexta-feira, 11 de janeiro de 2019

O estandarte de Ur

Artefato sumério  encontrado na antiga cidade de Ur , Iraque, datado de 2600 anos a C

O filme A mais bela



[O filme “A mais bela”] trata de um corpo de voluntários formado por jovens operárias. O cenário é uma fábrica de lentes militares que pertence à empresa Nippon Kogaku, na cidade de Hiratsuka. As jovens são empregadas na produção de lentes de precisão. Quando recebi a direção desse projeto, decidi que tentaria fazê-lo em estilo de semi-documentário. Comecei por libertar as jovens atrizes de tudo quanto tivessem adquirido - física e emocionalmente - que cheirasse à teatralidade. Os vestígios de maquiagem, o esnobismo, as afetações do palco, aquela particular falta de espontaneidade própria dos atores, tudo isso tinha de desaparecer. Queria que retornassem à condição original de jovens comuns. Assim, comecei exercícios de corrida e daí passei ao voleibol. Então, pedi que formassem uma banda de pífanos e tambores, treinassem marchas e tocar música e finalmente desfilassem pelas ruas. As atrizes pareciam não fazer objeção a correr e a jogar voleibol, mas se sentiam ultrajadas com a mera ideia de fazer algo que chamasse tanto a atenção como marchar pelas ruas com uma banda de pífanos. Tive de enfrentar uma forte resistência a essa solicitação. Mas, com a repetição, elas se acostumaram até mesmo a desfilar. Sua maquiagem perdeu a artificialidade e, à primeira vista e mesmo a um olhar mais atento, elas pareciam em todos os aspectos um saudável e ativo grupo de jovens comuns. Peguei então esse grupo e o coloquei no dormitório da empresa Nippon Kogaku. Enviei várias das jovens a cada uma das seções da fábrica e elas começaram a levar a vida de autênticas operárias, cumprindo a mesma carga horária.
Refletindo agora sobre meus atos, devo concluir que eu era um diretor terrivelmente severo. É de fato surpreendente como todos faziam, sem questionar, o que eu lhes pedia para fazer. Mas conforme o espírito predominante na época da guerra, todos recebiam ordens como algo natural. Eu não estava conscientemente pedindo a essas jovens que se comportassem de modo patriótico e impessoal. O fato é que o tema do filme é o auto sacrifício no servir a pátria e, se não as tivéssemos preparado para issso dessa forma, as personagens teriam sido como recortes de papelão, privados de qualquer realidade. A atriz Takako Ine representava a mãe no dormitório para as garotas da fábrica e sua capacidade natural de demonstrar afeição materna tornou-a muito popular entre as jovens atrizes; sua presença foi-me de grande ajuda.
Ao mesmo tempo que o elenco entrou no dormitório feminino, a equipe técnica e eu nos mudamos para o dormitório masculino. Nossas manhãs começavam sempre com as melodias dos pífanos e dos tambores. Quando ouvíamos essa música, pulávamos da cama, vestíamos nossas roupas e corríamos para o cruzamento da ferrovia de Hiratsuka. Ao longo da estrada coberta de geada branca vinha a banda de pífanos e tambores. Todas as jovens usavam faixas na cabeça e tocavam uma marcha simples mas inspiradora. Enquanto tocavam os instrumentos, olhavam-nos com o canto dos olhos ao passarem por nós, atravessavam o trilho da estrada e marchavam para o portão principal da fábrica Nippon Kogaku. Nós as víamos sumir na distância e então voltávamos ao dormitório para o café da manhã. Após a refeição, reuníamos o equipamento e íamos para a fábrica filmar.
O espírito com que filmávamos era exatamente o mesmo com que realizaríamos um documentário. Naturalmente, as jovens em cada seção da fábrica diziam as falas do drama que estavam no roteiro, mas em lugar de prestar atenção à câmera elas se mantinham completamente absorvidas em executar o trabalho fabril que estavam aprendendo e em controlar o funcionamento das máquinas. Em seus movimentos e nas expressões concentradas, quase não havia sinal de falta de espontaneidade comum aos atores; havia apenas a vitalidade e a beleza das pessoas no trabalho.





Kurosawa, Akira (1910-1998)


Relato autobiográfico. Tradução de Rosane Barguil Pavam et al. São Paulo: Estação Liberdade, 1990, p 197-199


Vieram da África


O Brasil não se limitou a recolher da África a lama de gente preta que lhe fecundou os canaviais e os cafezais; que lhe amaciou a terra seca; que lhe completou a riqueza das manchas de massapê. Vieram-lhe da África “donas de casa” para seus colonos sem mulher branca; técnicos para as minas; artífices em ferro; negros entendidos na criação de gado e na indústria pastoril; comerciantes em pano e sabão; mestres, sacerdotes e tiradores de reza maometanos.



Freyre, Gilberto (1900-1987)



Casa-Grande & Senzala, 6 Edição. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1950, p 527.


Deuses das profissões


Deuses das profissões: na mitologia chinesa todas as profissões têm a sua divindade protetora, a que os respectivos membros rendiam cultos, sucedendo o mesmo com as classes sociais. Na maioria dos casos, o deus protetor de uma profissão foi o seu inventor e o primeiro que se lhe dedicou. Por exemplo: na antiguidade, os músicos cegos que tocavam instrumentos musicais e cantavam nas cerimônias religiosas, rendiam culto ao “Antigo Cego”, antepassado da sua profissão, e K’uei, o animal de uma só perna, com a pele do qual o “Imperador Amarelo” fez o primeiro tambor; o general Suen Pin, que viveu no século IV a. C. e tinha os dedos dos pés cortados, lembrou-se de usar os pés metidos num invólucro de couro, para dissimular o seu defeito, tornando-se por isso o deus dos sapateiros.
Há também os que vieram a ser deuses da profissão que exerceram por haverem se distinguido nela. Foi o caso de Fan K’uai, que não passava de um humilde esfolador de cães, mas que se tornou o grande auxiliar do fundador da dinastia Han, sendo mais tarde o protetor dos carniceiros. Lu Pan, que, segundo a lenda, fazia falcões de madeira capazes de voar, passou a receber o culto dos marceneiros. Os ladrões, por sua vez, escolheram como patrono um salteador célebre, chamado Song Kiang. As próprias prostitutas tinham a sua protetora- P’an Kin-lien, uma viúva impudica, que foi morta pelo padastro e acabou por ser elevada à categoria de divindade. Quando não existia uma personagem definida para proteger determinada profissão, os artífices tinham de contentar-se com um deus anônimo: o “deus da laçadeira” para os tecelões, o “deus das árvores” para os jardineiros, e outros.

            Lamas, Maria (1893-1983)



Mitologia Geral: o mundo dos Deuses e dos Heróis, vol II. Lisboa: Editorial
Estampa, 1972.p318/9.

A diferença


A primitiva máquina a vapor, tal como a concebeu Newcomen, exigia a presença de uma pessoa exclusivamente encarregada de manobrar as torneiras, seja para introduzir o vapor no cilindro, seja para nele lançar a chuva fria destinada à condensação. Conta-se que um menino empregado nesse trabalho, muito entediado com a obrigação de o fazer, teve a ideia de ligar as manivelas das torneiras, por cordões, ao pêndulo da máquina. Desde então, a máquina abria e fechava por si mesma as suas torneiras; ela funcionava sozinha. Ora, um observador que comparasse a estrutura dessa segunda máquina com a da primeira, sem se ocupar dos dois meninos encarregados da vigilância, só teria verificado entre elas uma ligeira diferença de complicação. É tudo o que se pode perceber, com efeito, quando só se olham as máquinas. Mas se dermos uma olhadela nos meninos, veremos que um está absorvido por sua vigilância, e que o outro está livre para divertir-se à vontade, e que, por esse aspecto, a diferença entre as duas máquinas é radical, a primeira mantendo a atenção prisioneira, a segunda lhe dando livre trânsito. Diferença do mesmo gênero, segundo cremos, é a que se verificaria entre o cérebro do animal e o cérebro do homem.

Bergson, Henri (1859-1941)


Cartas, conferências e outros escritos. Traduções de Franklin Leopoldo e Silva e Nathanael Caxeiro. São Paulo: Abril Cultural (Os pensadores), 1984. p.205
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