[O filme “A mais bela”] trata de um corpo de
voluntários formado por jovens operárias. O cenário é uma fábrica de lentes
militares que pertence à empresa Nippon Kogaku, na cidade de Hiratsuka. As
jovens são empregadas na produção de lentes de precisão. Quando recebi a direção
desse projeto, decidi que tentaria fazê-lo em estilo de semi-documentário.
Comecei por libertar as jovens atrizes de tudo quanto tivessem adquirido - física
e emocionalmente - que cheirasse à teatralidade. Os vestígios de maquiagem, o
esnobismo, as afetações do palco, aquela particular falta de espontaneidade
própria dos atores, tudo isso tinha de desaparecer. Queria que retornassem à
condição original de jovens comuns. Assim, comecei exercícios de corrida e daí
passei ao voleibol. Então, pedi que formassem uma banda de pífanos e tambores,
treinassem marchas e tocar música e finalmente desfilassem pelas ruas. As
atrizes pareciam não fazer objeção a correr e a jogar voleibol, mas se sentiam
ultrajadas com a mera ideia de fazer algo que chamasse tanto a atenção como
marchar pelas ruas com uma banda de pífanos. Tive de enfrentar uma forte
resistência a essa solicitação. Mas, com a repetição, elas se acostumaram até
mesmo a desfilar. Sua maquiagem perdeu a artificialidade e, à primeira vista e
mesmo a um olhar mais atento, elas pareciam em todos os aspectos um saudável e
ativo grupo de jovens comuns. Peguei então esse grupo e o coloquei no
dormitório da empresa Nippon Kogaku. Enviei várias das jovens a cada uma das
seções da fábrica e elas começaram a levar a vida de autênticas operárias,
cumprindo a mesma carga horária.
Refletindo agora sobre meus atos, devo
concluir que eu era um diretor terrivelmente severo. É de fato surpreendente
como todos faziam, sem questionar, o que eu lhes pedia para fazer. Mas conforme
o espírito predominante na época da guerra, todos recebiam ordens como algo
natural. Eu não estava conscientemente pedindo a essas jovens que se
comportassem de modo patriótico e impessoal. O fato é que o tema do filme é o
auto sacrifício no servir a pátria e, se não as tivéssemos preparado para issso
dessa forma, as personagens teriam sido como recortes de papelão, privados de
qualquer realidade. A atriz Takako Ine representava a mãe no dormitório para as
garotas da fábrica e sua capacidade natural de demonstrar afeição materna
tornou-a muito popular entre as jovens atrizes; sua presença foi-me de grande
ajuda.
Ao mesmo tempo que o elenco entrou no
dormitório feminino, a equipe técnica e eu nos mudamos para o dormitório
masculino. Nossas manhãs começavam sempre com as melodias dos pífanos e dos
tambores. Quando ouvíamos essa música, pulávamos da cama, vestíamos nossas
roupas e corríamos para o cruzamento da ferrovia de Hiratsuka. Ao longo da
estrada coberta de geada branca vinha a banda de pífanos e tambores. Todas as
jovens usavam faixas na cabeça e tocavam uma marcha simples mas inspiradora.
Enquanto tocavam os instrumentos, olhavam-nos com o canto dos olhos ao passarem
por nós, atravessavam o trilho da estrada e marchavam para o portão principal
da fábrica Nippon Kogaku. Nós as víamos sumir na distância e então voltávamos
ao dormitório para o café da manhã. Após a refeição, reuníamos o equipamento e
íamos para a fábrica filmar.
O espírito com que filmávamos era exatamente
o mesmo com que realizaríamos um documentário. Naturalmente, as jovens em cada
seção da fábrica diziam as falas do drama que estavam no roteiro, mas em lugar de
prestar atenção à câmera elas se mantinham completamente absorvidas em executar
o trabalho fabril que estavam aprendendo e em controlar o funcionamento das
máquinas. Em seus movimentos e nas expressões concentradas, quase não havia
sinal de falta de espontaneidade comum aos atores; havia apenas a vitalidade e
a beleza das pessoas no trabalho.
Kurosawa, Akira (1910-1998)
Relato
autobiográfico. Tradução de Rosane Barguil Pavam et al. São Paulo: Estação
Liberdade, 1990, p 197-199