Entrei na de entregar papel por indicação de
um amigo que estudava comigo. Era para ser uma parada rápida, só pra me segurar
por um tempo, mas já tô nessa há quase um ano. A grana é curta, trinta reais
por dia, de segunda a sexta, de oito às quatro. Em compensação o trabalho é fácil:
é só entregar os papéis na mão de quem passa na minha frente, se a pessoa pegar
tudo bem, não me importo se ela vai jogar no chão ou vai procurar o escritório
pra pedir um empréstimo. Se ela não pegar, vida que segue, o que não falta é
gente pra ficar tentando. Uma coisa boa nesse trabalho é que não preciso falar
com ninguém, tenho tempo pra ficar pensando, planejando minhas coisas,
imaginando o futuro.
Foi estranha a primeira vez. Tinha dormido
tarde, cheguei lá no ponto de encontro em cima da hora marcada, já tinha um
pessoal esperando. Tinha muita gente de rua, uma mina grávida, uma coroa com
mais idade do que minha vó. Não sabia se era exatamente ali que deveria
aguardar, meu amigo ainda não tinha chegado. Acendi um cigarro, tentando
entender onde é que tava me metendo. Meu amigo chegou confirmando que o lugar
era ali mesmo, esperamos mais uns dez minutos e apareceu o fiscal. Ele
perguntou meu nome e me entregou um paco de papel, depois me disse para entregá-lo
na rua da Carioca, bem na esquina, um pouco antes de chegar na praça
Tiradentes. Então fui pra lá.
No começo sentia muita vergonha. As pessoas
passavam, parecia que elas sentiam sempre pena de mim, ou raiva, sei lá. Às vezes,
quando eu via alguém chegando, fazia o contato visual, me preparava pra
entregar o papel: nessas horas, de alguma forma, sentia que aquelas pessoas
preferiam que eu não existisse. O problema é que eu levava os olhares pro lado
pessoal. Demorei pra entender que aqueles olhares, independentemente do significado,
não eram pra mim, eram pro entregador de papel. E esse não sou eu, nem ninguém.
Depois de entender essa diferença, ficou tudo
mais tranquilo. Menos quando passava algum conhecido. Nessas horas eu tinha
vontade de me esconder embaixo do asfalto. A primeira vez que aconteceu foi com
um amigo lá do morro, ele vinha andando pela calçada, vi de longe. Pensei em
sair de perto, mas era mais ou menos a hora que o fiscal passava por ali.
Decidi ficar parado, com a cabeça baixa pra ele não me ver. Quando achei que já
tinha passado e levantei a cabeça, ele estava parado na minha frente, pronto
pra falar comigo. Tentei esconder os papéis, mas não deu. Falei pra ele: ”Tô na
correria, irmão”. Ele me disse que tá foda, tá correndo atrás também, que se pá
ia ver comigo pra colocar ele nessa fita. Depois a gente se abraçou e ele me
disse pra aparecer lá na casa dele pra jogar videogame.
Martins, Geovani (1991- )
O sol na cabeça: contos. São Paulo: Companhia
das Letras, 2018. p 102-103
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