domingo, 21 de junho de 2020

Sou tanoeiro


O meu nome é João Anes, vim do Porto e sou tanoeiro, também para construir um convento são precisos tanoeiros, quem haveria de fazer e consertar as dornas, as pipas e os baldes, se um pedreiro está no andaime e lhe chegam o  cocho da massa, tem de molhar as pedras com  a vassoura para que façam boa presa a pedra que está e a outra que vai assentar, para isso é que lá tem o balde, e os  animais bebem onde, bebem nas tinas,  e quem faz as tinas, fizeram-nas os tanoeiros, não é por me gabar, mas não há ofício como  o que eu tenho, até Deus foi tanoeiro, vejam-me essa grande dorna que é o mar, se a obra não estivesse perfeita, se as aduelas não tivessem tão bem ajustadas, entrava-nos o mar pela terra dentro, era aí outro dilúvio, sobre minha vida não tenho muito que dizer, deixei a família no Porto, lá se vão governando, há dois anos que não vejo a mulher, às vezes sonho que estou deitado com ela, mas se sou eu não tenho  a minha cara, no dia seguinte corre-me sempre mal o trabalho, gostava de me ver completo no sonho, em vez daquela cara sem boca nem feição, sem olhos nem nariz, que cara estará minha mulher vendo nessa ocasião, não sei,era bom que fosse a minha


José Saramago (1922-2010)



Memorial do Convento. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1995, p 235.


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