Em tantos anos de honrada vida profissional,
jamais Raimundo Silva se atrevera, em plena consciência, a infringir o antes citado
código deontológico não escrito que pauta as ações do revisor na sua relação com
as ideias e as opiniões dos autores. Para o revisor que conhece o seu lugar, o
autor, como tal, é infalível. Sabe-se, por exemplo, que o revisor de Nietzsche,
sendo embora fervoroso crente, resistiu à tentação de introduzir, também ele, a
palavra Não numa certa página, transformando em Deus não morreu o Deus está
morto do filósofo. Os revisores, se pudessem, se não estivessem atados de pés e
mãos por um conjunto de proibições mais impositivo que o código penal, saberiam
mudar a face do mundo, implantar o reino da felicidade universal, dando de
beber a quem tem sede, de comer a quem tem fome, paz aos que vivem agitados,
alegria aos tristes, companhia aos solitários, esperança a quem a tinha
perdido, para não falar da fácil liquidação das misérias e dos crimes, porque
tudo eles fariam pela simples mudança das palavras, e se alguém tem dúvidas
sobre estas novas demiurgias não tem mais que lembrar-se de que assim mesmo foi
o mundo feito e feito o homem, com palavras, umas e não outras, para que assim
ficasse e não doutra maneira. Faça-se, disse Deus, e imediatamente apareceu
feito.
José Saramago (1922-2010)
História do cerco de Lisboa. São
Paulo: Companhia das Letras,1998, p 50.
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