Kirsten Luce (1981-) NYT |
Coletânea de excertos sobre as várias faces do trabalho, escolhidos a partir de muitas e prazerosas leituras de textos literários e afins (com algumas ilustrações)
sábado, 25 de fevereiro de 2023
quarta-feira, 22 de fevereiro de 2023
domingo, 12 de fevereiro de 2023
Divisão do trabalho
Sócrates: Uma pessoa fará melhor em trabalhar sozinho em muitos ofícios, ou, quando for só um a executar um?
Adimanto: Quando for só um a executar um.
Sócrates: Mas julgo eu que é também evidente
que, se alguém deixar fugir a oportunidade de fazer uma coisa, perde-a.
Adimanto: É evidente.
Sócrates: É que, creio eu, a obra não espera
pelo lazer do obreiro, mas força é que o obreiro acompanhe o seu trabalho, sem
ser à maneira de um passatempo.
Adimanto: É forçoso.
Sócrates: Por conseguinte, o resultado é mais
rico, mais belo e mais fácil, quando cada pessoa fizer uma só coisa, de acordo
com a sua natureza e na ocasião própria, deixando em paz as outras.
Adimanto: Absolutamente.
Platão (427 aC-347aC)
A República. Tradução de Maria Helena da Rocha Pereira. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1993. 370a
quarta-feira, 8 de fevereiro de 2023
“Nunca visto” x “sempre assim”
Abro aqui um parêntese: um dos grandes
problemas dos sociólogos é evitar cair em uma ou outra das duas ilusões
simétricas, a ilusão “nunca visto” (há sociólogos que adoram isso, fica muito
chique, sobretudo na televisão, anunciar fenômenos inauditos, revoluções) e a
do “sempre assim” (que é antes do feitio dos sociólogos conservadores: “nada de
novo sob o sol, haverá sempre dominantes e dominados, ricos e pobres...”). O
risco é sempre muito grande, tanto maior quanto a comparação entre épocas é
extremamente difícil: apenas se pode comparar de estrutura a estrutura e sempre
se corre o risco de se enganar e descrever como algo de inaudito algo banal,
simplesmente por incultura. Essa é uma das razões que fazem com que jornalistas
sejam por vezes perigosos: nem sempre sendo muito cultos, surpreendem-se com
coisas não muito surpreendentes e não se surpreendem com coisas espantosas... A
história é indispensável para nós, sociólogos.
Pierre Bourdieu (1930-2002)
Sobre a televisão. Tradução
de Maria Lucia Machado. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 1997. p 61.
Esquecer metodologias
Nenhuma das obras clássicas das ciências sociais é explicável por suas virtudes metodológicas. Muito ao contrário. Tudo que se produziu com extremo rigor metódico, fazendo corresponder à cada afirmação a base empírica em que se assenta e tudo quantificado e comprovado estatisticamente resultou medíocre. O cientista aparentemente só necessita aprender métodos e estudar metodologia para esquecê-los depois. Esquecê-los, sobretudo, na operação de construção artística da obra em que deverá comunicar aos seus leitores, tão persuasoriamentente quanto possível, o que ele sabe.
Darcy Ribeiro (1922-1997)
Gentidades, Coleção
L&PM Pocket.
Falar é agir
Falar é agir; uma coisa nomeada não é mais inteiramente a mesma, perdeu a sua inocência. Nomeando a conduta de um indivíduo, nós a revelamos a ele; ele se vê. E como ao mesmo tempo a nomeamos para todos os outros, no momento em que ele se vê, sabe que está sendo visto; seu gesto furtivo, que dele passava despercebido, passa a existir enormemente, a existir para todos, integra-se no espírito objetivo, assume dimensões novas, é recuperado. Depois disso, como se pode querer que ele continue agindo da mesma maneira? Ou irá perseverar na sua conduta por obstinação, e com conhecimento de causa, ou irá abandoná-la. Assim, ao falar, eu desvendo a situação por meu próprio projeto de mudá-la; desvendo-a a mim mesmo e aos outros, para mudá-la; atinjo-a em pleno coração, transpasso-a e fixo-a sob todos os olhares; passo a dispor dela; a cada palavra que digo, engajo-me um pouco mais no mundo e, ao memso tempo, passo a emergir dele um pouco mais, já que o ultrapasso na direção do porvir.
Jean-Paul Sartre
(1905-1980)
Que é a literatura?
Tradução de Carlos Felipe Moisés. São Paulo: Editora Ática, 1989. p.20.
Editando ‘O Capital’
Deixar o Livro Segundo de O Capital pronto para ser impresso, e isso de modo tal que fosse, por um lado, obra coerente e o mais possível acabada, mas também, por outro lado, obra exclusiva do Autor e não do editor, não foi trabalho fácil. O grande número de elaborações existentes, na maioria fragmentárias, dificultou a tarefa. No máximo uma única (Manuscrito IV) estava, até onde se estendia, inteiramente redigida para ser impressa; em compensação, no entanto, a maior parte era obsoleta, devido a redações posteriores. A massa principal do material, embora completado no que tange ao conteúdo, não o estava quanto à forma; estava redigida na linguagem em que Marx costumava fazer seus resumos; estilo descuidado, expressões coloquiais, em geral de rude humor, termos técnicos ingleses e franceses, frequentemente frases inteiras e até mesmo páginas, em inglês; é o registro gráfico dos pensamentos na forma em que se desenvolviam na cabeça do Autor. Ao lado de certas partes isoladas, expostas pormenorizadamente, outras, igualmente importantes, apenas esboçadas; o material de fatos ilustrativos coletado estava, quando muito, agrupado, mas longe de ser elaborado; ao final dos capítulos, no afã de chegar ao seguinte, frequentemente apenas um par de frases soltas como marcos da exposição, deixada aí incompleta; por fim, a letra, reconhecidamente ilegível às vezes até para o próprio Autor.
Friedrich
Engels (1820-1895)
Prefácio ao Livro Segundo
O Processo de Circulação d’O Capital, de Karl Marx. O Capital, Crítica da
Economia Política, volume II. Tradução de Regis Barbosa e Flávio R. Kothe. São Paulo:
Abril Cultural, 1983.