As mulheres dos desempregados recorriam de novo às receitas do
tempo de guerra. Andavam umas nas cozinhas das outras, vendo o que se podia
arranjar com cascas de maçãs, folhas de couve-flor, restos de côdea de pão e até
de borra de café. Já sabiam há muito tempo que da água em que tinham cozinhado
as batatas podiam fazer uma sopa, se pusessem dentro as cascas de ervilhas
verdes. Berlim parecia uma cidade sitiada, onde se vivia dos mais estranhos
alimentos. Aos domingos, Maria ficava desolada quando punha na mesa o assado de
carne de cavalo e as crianças faziam “Opa, Opa”,
Um dia, Helena entrou precipitadamente no quarto e declarou:
_ Arranjei um emprego.
Os pais, os irmãos olharam-na como vinha imaginando pelo caminho:
com admiração. Em toda a sua vida nunca a tinham fitado assim e de repente eis
que todos a contemplavam como se tivesse feito uma descoberta incrível. O pai
chegou a oferecer-lhe uma cadeira e a mãe, pôs um prato diante dela. Começou a contar-lhes:
fizera, às escondidas, um trabalho de experiência numa casa cerzideira: uma
moça com quem tinha ido carimbar o cartão de desempregada ensinara-lhe uns
pontos e o manejo de uma agulha especial, com a qual se uniam os fios. Essa casa,
da parte ocidental da cidade, famosa por seu luxo, procurava dúzias de
aprendizes para um trabalho de experiência e a mãe sabia que ela era
habilidosa. Teria de entrar no serviço às oito horas e para começar ganharia
oito marcos por semana.
_ Vejam só! _admirou-se o pai.
_ Sempre foste habilidosa- comentou a mãe.
Rasparam o fundo da panela para arranjar-lhe depressa um prato de
sopa. Parecia que o destino estava arrependido de lhe ter sempre dado tão
pouco. Finalmente recompensava-a de ter aturado sem se queixar da fealdade, da falta
de graça e de vivacidade, que a levava a ficar muda, sentada num canto. Na família
e até em todo o andar era a única que tinha trabalho bem remunerado, ainda por
cima, um trabalho especializado, que não era acessível a qualquer um e
evidenciava de quanto era capaz
A noção e o orgulho de ser útil
aumentaram quando, no dia seguinte, caminhou apressada para a estação do
metropolitano e seguiu para oeste. “É curioso- pensava no carro repleto- que
toda essa gente siga para o trabalho; na minha família sou a única que tem
emprego e em nossa casa há poucas pessoas trabalhando”. Já tarde, quando
voltou, tinham-lhe preparado comida, como se fosse mãe de família. Encheram-na
de perguntas. Estava contratada por um mês, como experiência, mas não havia dúvidas
que passaria na prova. Era mais hábil do que se imaginava e deu prova disso num
minuto: uma dama da alta sociedade saíra chorando do carro, porque fizera com o
cigarro um buraco na saia de um costume novo, caríssimo; prometera à dona da casa
pagar o triplo do preço normal se pudesse esperar pelo conserto. A combinação
dessa senhora que aguardava, desesperada, enquanto Helena cosia sob as
exclamações impacientes da patroa, era com certeza tão cara como um vestido de
baile. Helena não se admirou que a senhora pagasse pelo seu trabalho no
bastidor um preço igual ao montante da indenização de um desempregado, da mesma
forma que um astrônomo nunca se admira com o universo do qual observa uma estrelazinha
com seu telescópio.
Seghers, Anna (1900-1983)
Os mortos permanecem jovens. Tradução de Maria Werneck
de Castro. São Paulo: Expressão Popular, 2003. P 289-290
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