terça-feira, 23 de abril de 2019

Primeiro emprego


As mulheres dos desempregados recorriam de novo às receitas do tempo de guerra. Andavam umas nas cozinhas das outras, vendo o que se podia arranjar com cascas de maçãs, folhas de couve-flor, restos de côdea de pão e até de borra de café. Já sabiam há muito tempo que da água em que tinham cozinhado as batatas podiam fazer uma sopa, se pusessem dentro as cascas de ervilhas verdes. Berlim parecia uma cidade sitiada, onde se vivia dos mais estranhos alimentos. Aos domingos, Maria ficava desolada quando punha na mesa o assado de carne de cavalo e as crianças faziam “Opa, Opa”,
Um dia, Helena entrou precipitadamente no quarto e declarou:
_ Arranjei um emprego.
Os pais, os irmãos olharam-na como vinha imaginando pelo caminho: com admiração. Em toda a sua vida nunca a tinham fitado assim e de repente eis que todos a contemplavam como se tivesse feito uma descoberta incrível. O pai chegou a oferecer-lhe uma cadeira e a mãe, pôs um prato diante dela. Começou a contar-lhes: fizera, às escondidas, um trabalho de experiência numa casa cerzideira: uma moça com quem tinha ido carimbar o cartão de desempregada ensinara-lhe uns pontos e o manejo de uma agulha especial, com a qual se uniam os fios. Essa casa, da parte ocidental da cidade, famosa por seu luxo, procurava dúzias de aprendizes para um trabalho de experiência e a mãe sabia que ela era habilidosa. Teria de entrar no serviço às oito horas e para começar ganharia oito marcos por semana.
_ Vejam só! _admirou-se o pai.
_ Sempre foste habilidosa- comentou a mãe.
Rasparam o fundo da panela para arranjar-lhe depressa um prato de sopa. Parecia que o destino estava arrependido de lhe ter sempre dado tão pouco. Finalmente recompensava-a de ter aturado sem se queixar da fealdade, da falta de graça e de vivacidade, que a levava a ficar muda, sentada num canto. Na família e até em todo o andar era a única que tinha trabalho bem remunerado, ainda por cima, um trabalho especializado, que não era acessível a qualquer um e evidenciava de quanto era capaz
 A noção e o orgulho de ser útil aumentaram quando, no dia seguinte, caminhou apressada para a estação do metropolitano e seguiu para oeste. “É curioso- pensava no carro repleto- que toda essa gente siga para o trabalho; na minha família sou a única que tem emprego e em nossa casa há poucas pessoas trabalhando”. Já tarde, quando voltou, tinham-lhe preparado comida, como se fosse mãe de família. Encheram-na de perguntas. Estava contratada por um mês, como experiência, mas não havia dúvidas que passaria na prova. Era mais hábil do que se imaginava e deu prova disso num minuto: uma dama da alta sociedade saíra chorando do carro, porque fizera com o cigarro um buraco na saia de um costume novo, caríssimo; prometera à dona da casa pagar o triplo do preço normal se pudesse esperar pelo conserto. A combinação dessa senhora que aguardava, desesperada, enquanto Helena cosia sob as exclamações impacientes da patroa, era com certeza tão cara como um vestido de baile. Helena não se admirou que a senhora pagasse pelo seu trabalho no bastidor um preço igual ao montante da indenização de um desempregado, da mesma forma que um astrônomo nunca se admira com o universo do qual observa uma estrelazinha com seu telescópio.



Seghers, Anna (1900-1983)

Os mortos permanecem jovens. Tradução de Maria Werneck de Castro. São Paulo: Expressão Popular, 2003. P 289-290

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