Autor desconhecido |
Coletânea de excertos sobre as várias faces do trabalho, escolhidos a partir de muitas e prazerosas leituras de textos literários e afins (com algumas ilustrações)
terça-feira, 30 de abril de 2019
Nos subterrâneos da mina de carvão
No dia seguinte, e nos que vieram depois, Etienne
continuou trabalhando na mina. Ia-se acostumando, regulava sua existência pelo
trabalho e pelos novos hábitos que, a princípio, tinham parecido tão duros.
[...] E assim passaram dias, semanas, meses.
Agora, já na rotina, levantava-se às três horas, bebia café e carregava consigo
o sanduíche duplo que a mulher de Rasseneur preparava na véspera. [...] Como os
outros, tinha o seu pano para amarrar na cabeça, suas calças e jaqueta de
trabalho, tiritava e aquecia as costas no fogão do vestiário. Depois vinha a
espera, descalço, na recepção entrecortada por violentas correntes de ar. Mas a
máquina de grossos membros de aço enfeitados de cobre, luzindo lá em cima, no
escuro, não o atemorizava mais, nem os cabos a pique, voltejando como asas
negras e silentes de pássaro noturno, nem os elevadores emergindo e mergulhando
sem descanso em meio ao barulhão dos sinais, das ordens bradadas, dos vagonetes
estremecendo o chão de ferro. Sua lâmpada iluminava mal, o maldito lanterneiro
seguramente não a limpara... Ele só despertava realmente quando o jovem Mouque
os empurrava para dentro do elevador com grande estardalhaço, dando palmadas
retumbantes nos traseiros das moças. O ascensor desprendia-se, caindo como uma
pedra num poço, sem que ele sequer virasse a cabeça para ver a luz
desaparecendo. Jamais pensava na possibilidade de uma queda, sentia-se em casa à
medida que afundava nas trevas sob a chuvada violenta. Embaixo, na expedição,
assim que Pieron abria as portas do elevador com seu ar hipócrita de humildade,
era sempre o mesmo tropel de rebanho, os grupos partindo para os seus filões a
passo arrastado. Agora, ele já conhecia melhor as galerias da mina do que as
ruas de Montsou, sabia onde tinha que dobrar, onde abaixar-se ou evitar mais
adiante uma poça. Habituara-se tanto àqueles dois quilômetros subterrâneos que
poderia percorre-los sem lanterna com as mãos nos bolsos. E todos os dias eram
os mesmos encontros [...]
Com o tempo, Etienne começou a acostumar-se à
umidade e ao abafamento do filão onde trabalhava. O respiradouro já lhe parecia
fácil de subir, como se estivesse encolhido e pudesse agora passar por fendas
onde antes não teria ousado enfiar a mão. Respirava sem dificuldade a poeira do
carvão, via muito bem no escuro, suava tranquilamente, adaptado à sensação das
roupas molhadas colando-se ao corpo da manhã à noite. E mais, já não gastava
inutilmente suas forças, adquirira rapidamente uma destreza que espantava os
companheiros. Ao cabo de três semanas era citado entre os bons operadores de
vagonetes da mina: ninguém melhor do que ele rodava seu vagonete até o plano inclinado
embalando-o a seguir com tanta correção. Sua pequena estatura lhe permitia
entrar em qualquer lugar, seus braços, apesar de brancos e finos como de
mulher, pareciam de ferro sob a delicadeza da pele, tanta força punham no
trabalho. Nunca se queixava, sem dúvida por orgulho, mesmo quando já não podia
mais de tanto cansaço. Acusavam-no apenas de não saber brincar, ficava logo
todo eriçado assim que alguém lhe fazia uma piada. Com o tempo acabou sendo
aceito e olhado como um verdadeiro mineiro, escravizado pelo hábito que o
reduzia um pouco cada dia à função de máquina.
Zola, Émile (1840-1901)
Germinal. Tradução de Francisco
Bittencourt. São Pulo: Editora Martin Claret Ltda., 2006, p 120 121.
segunda-feira, 29 de abril de 2019
quarta-feira, 24 de abril de 2019
terça-feira, 23 de abril de 2019
Primeiro emprego
As mulheres dos desempregados recorriam de novo às receitas do
tempo de guerra. Andavam umas nas cozinhas das outras, vendo o que se podia
arranjar com cascas de maçãs, folhas de couve-flor, restos de côdea de pão e até
de borra de café. Já sabiam há muito tempo que da água em que tinham cozinhado
as batatas podiam fazer uma sopa, se pusessem dentro as cascas de ervilhas
verdes. Berlim parecia uma cidade sitiada, onde se vivia dos mais estranhos
alimentos. Aos domingos, Maria ficava desolada quando punha na mesa o assado de
carne de cavalo e as crianças faziam “Opa, Opa”,
Um dia, Helena entrou precipitadamente no quarto e declarou:
_ Arranjei um emprego.
Os pais, os irmãos olharam-na como vinha imaginando pelo caminho:
com admiração. Em toda a sua vida nunca a tinham fitado assim e de repente eis
que todos a contemplavam como se tivesse feito uma descoberta incrível. O pai
chegou a oferecer-lhe uma cadeira e a mãe, pôs um prato diante dela. Começou a contar-lhes:
fizera, às escondidas, um trabalho de experiência numa casa cerzideira: uma
moça com quem tinha ido carimbar o cartão de desempregada ensinara-lhe uns
pontos e o manejo de uma agulha especial, com a qual se uniam os fios. Essa casa,
da parte ocidental da cidade, famosa por seu luxo, procurava dúzias de
aprendizes para um trabalho de experiência e a mãe sabia que ela era
habilidosa. Teria de entrar no serviço às oito horas e para começar ganharia
oito marcos por semana.
_ Vejam só! _admirou-se o pai.
_ Sempre foste habilidosa- comentou a mãe.
Rasparam o fundo da panela para arranjar-lhe depressa um prato de
sopa. Parecia que o destino estava arrependido de lhe ter sempre dado tão
pouco. Finalmente recompensava-a de ter aturado sem se queixar da fealdade, da falta
de graça e de vivacidade, que a levava a ficar muda, sentada num canto. Na família
e até em todo o andar era a única que tinha trabalho bem remunerado, ainda por
cima, um trabalho especializado, que não era acessível a qualquer um e
evidenciava de quanto era capaz
A noção e o orgulho de ser útil
aumentaram quando, no dia seguinte, caminhou apressada para a estação do
metropolitano e seguiu para oeste. “É curioso- pensava no carro repleto- que
toda essa gente siga para o trabalho; na minha família sou a única que tem
emprego e em nossa casa há poucas pessoas trabalhando”. Já tarde, quando
voltou, tinham-lhe preparado comida, como se fosse mãe de família. Encheram-na
de perguntas. Estava contratada por um mês, como experiência, mas não havia dúvidas
que passaria na prova. Era mais hábil do que se imaginava e deu prova disso num
minuto: uma dama da alta sociedade saíra chorando do carro, porque fizera com o
cigarro um buraco na saia de um costume novo, caríssimo; prometera à dona da casa
pagar o triplo do preço normal se pudesse esperar pelo conserto. A combinação
dessa senhora que aguardava, desesperada, enquanto Helena cosia sob as
exclamações impacientes da patroa, era com certeza tão cara como um vestido de
baile. Helena não se admirou que a senhora pagasse pelo seu trabalho no
bastidor um preço igual ao montante da indenização de um desempregado, da mesma
forma que um astrônomo nunca se admira com o universo do qual observa uma estrelazinha
com seu telescópio.
Seghers, Anna (1900-1983)
Os mortos permanecem jovens. Tradução de Maria Werneck
de Castro. São Paulo: Expressão Popular, 2003. P 289-290
sexta-feira, 19 de abril de 2019
sábado, 13 de abril de 2019
quarta-feira, 3 de abril de 2019
segunda-feira, 1 de abril de 2019
De um documentarista: como perguntar?
Às vezes você intervém e faz a pergunta boa; às
vezes você faz a pergunta errada; às vezes eu não falo e sinto que devia ter
falado. Você erra a todo momento. Erra e acerta. Não há ciência nisso. Às vezes
uma pergunta imbecil gera uma resposta absolutamente fantástica. Ou você dubla,
o que eu sou contra, ou vai assim mesmo. Agora, o pior de tudo é quando você
simplesmente não respeita o silêncio, que podia dar em alguma coisa, porque
fica ansioso demais. Mas é muito difícil, pois a pessoa pode estar sofrendo.
[...]Essa pessoa que aparentemente não sabe
nada tem uma extraordinária intuição do que você quer. Se o entrevistador
quiser respostas de protesto, de “esquerda”, ele vai ter; se quiser o contrário,
vai ter também. Essa é uma das coisas mais importantes a se quebrar, não
sugerir ao outro o que você quer ouvir. O que quer dizer respeitar uma pessoa? É
respeitar sua singularidade, seja ela uma escrava que ama a servidão, seja uma
escrava que odeia a servidão. Muitos documentaristas só ouvem as pessoas que dão
respostas de acordo com suas intenções, o que gera um acúmulo de respostas do
mesmo tipo, previsíveis, e que são aquilo que o diretor quer ouvir.
Coutinho, Eduardo (1933-2014)
Consuelo Martins. O documentário
de Eduardo Coutinho: televisão, cinema e vídeo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed,
2004. p 147 e 150.
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