terça-feira, 19 de fevereiro de 2019

Despedidos da Ford


Havia dezoito anos que Henry Ford tinha conquistado o título de patrão modelo, guia e instrutor de todos os outros patrões da América. Durante esse tempo tinha publicado quatro livros assinados com o seu nome, uma centena de artigos em revistas e só Deus sabe quantas entrevistas. Agora era ocasião de se perguntar que resultados tinham dado as suas teorias. A resposta é a seguinte: Henry era o homem mais odiado de toda indústria automobilística. Qualquer de seus trabalhadores que comprasse um dos números do “Saturday Evening Post” e lesse os seus artigos sobre as condições ideais das fábricas Ford, atiraria o jornal no chão e o pisaria com seus sapatos engraxados.
Havia anos que Henry afirmava ao mundo que a máquina não era responsável pela falta de trabalho. Era fácil constatar. Nas fábricas de River Rouge montavam-se novas máquinas tão rapidamente quanto eram inventadas e construídas. Vinte homens que tinham por tarefa fabricar uma determinada peça, viam, da noite para o dia, montarem uma nova máquina; ensinavam um deles a manobrá-la e ela realizava o trabalho dos outros dezenove! Esses não eram despedidos imediatamente, parece que havia uma certa regra que não o permitia. O capataz os encarregava de outros trabalhos, começava a meter-lhes a espada nos rins, e os homens já sabiam o que isso significava.
Quantos pretextos se usavam para se desvencilharem deles! Ao lado da casa de Abner morava um amigo seu que trabalhou durante dezessete anos na companhia e que foi despedido porque tinha começado a limpar os braços sujos de graxa alguns segundos antes da sirena tocar. Na outra quadra, vivia um rapaz que tinha sido mensageiro, mas que cometera o crime de parar um instante para comprar uma barra de chocolate. Havia mil cantinhos nos regulamentos nos quais os “raposas” podiam agarrar um empregado. Um capataz tinha falado com um dos empregados; era contrário ao regulamento: rua! Dois operários tinham discutido durante o trabalho; era contrário ao regulamento: rua com os dois! Despedia-se pelo simples esquecimento de por o distintivo no peito, por demorar alguns segundos de mais na patente, por comer a merenda sentado no chão, por falar com os operários da turma que vinha substituir a que estava trabalhando. Às vezes não era preciso cometer nenhuma dessas faltas; bastava que um dos ex- pugilistas do “serviço de vigilância” assegurasse que o operário tinha feito. Não havia recurso de espécie alguma.
Se o operário era esperto e conhecia todos os regulamentos, despediam-no de outra maneira: não tinham mais necessidade de seus serviços, mas podia continuar com o distintivo, figuraria na relação do pessoal e seria chamado assim que houvesse trabalho. Dessa maneira, camuflavam as estatísticas; mas isso significava que todo trabalho estava interdito àquele operário, porque o novo patrão indagaria onde tinha trabalhado antes, se comunicaria com a fábrica Ford para averiguar, e, como é logico, não aceitaria um empregado que fazia parte da Ford.
Esse estado de coisas piorava à medida que a crise se prolongava. Os vinte e cinco mil operários que restavam foram forçados ao limite, até caírem de cansaço. Seguidamente saía um de padiola, porque homens assim esgotados não podiam atender a uma máquina sem se arriscarem a acidentes. Sobre nenhum outro assunto Henry escreveu tão eloquentemente como a respeito da importância da segurança, mas agora o seu “controle de segurança” tinha sua ação anulada pelo seu “serviço de aceleração”, e murmurava-se na fábrica que o trabalho estava custando uma vida por dia. Mas como ele tinha um hospital particular, era impossível se obter qualquer cifra.

Sinclair, Upton (1878-1968)


Ford, o rei dos automóveis baratos. Tradução de Casemiro M. Fernandes. Porto Alegre: Edição da Livraria do Globo, 1940. p 147-148.


Nenhum comentário:

Postar um comentário