As carroçarias, os para-lamas, as portas, as
capotas são lisas, brilhantes, multicolores. Nós, os operários, somos cinzentos,
sujos, esfarrapados. O objeto sugou a cor, não ficou nada para nós. Ele
resplandece com todo brilho, o carro que está sendo fabricado. Avança
lentamente através das etapas do seu revestimento, enriquecendo-se de acessórios
e de cromos, seu interior guarnecido de tecido macio; todas as atenções são
para ele. Zomba de nós. Para ele, só para ele, as luzes da grande linha de
montagem. Nós, os trabalhadores, estamos envolvidos numa noite invisível.
Como não ter desejo de saquear? Quem, dentre
nós, não sonha às vezes em vingar-se desses carros insolentes, tão pacíficos, tão
lisos, tão lisos?
De vez em quando alguém não resiste e entra
em ação. Christian contou-me a história de um sujeito que fez isso aqui mesmo,
na oficina 85, pouco antes da minha chegada. Todo mundo ainda se lembra.
Era um negro, muito forte, que falava francês
com dificuldade, mas que conseguia exprimir-se de qualquer jeito. Seu trabalho
consistia em aparafusar uma peça do painel de controle com uma chave de fenda.
Cinco parafusos a colocar, em cada carro. Numa sexta feira, à tarde, estava no
quingentésimo parafuso do dia. De repente, começou a gritar e precipitou-se
sobre os para-lamas dos carros, brandindo sua chave de fenda como um punhal.
Dilacerou cerca de uma dezena de carroçarias antes que um grupo de blusões brancos
e azuis acorresse às pressas para dominá-lo e levá-lo, ofegante e gesticulando,
até a enfermaria.
“Que é que aconteceu com ele? ”
_. Deram uma injeção nele e uma ambulância
levou ele para o asilo.
_. Nunca mais voltou?
_. Voltou. Ficou no asilo umas três semanas.
Depois disso, mandaram ele de volta. Dizendo que não era grave, só uma depressão
nervosa. Então a Citroen aceitou ele de novo.
_. Na linha?
_. Não, num trabalho por produtividade, bem
perto de onde você trabalhava antes. Ó, o cara revestia cabos ali, ali onde está
o português. Não sei o que fizeram com ele no asilo mas ficou estranho. Tava sempre
com um ar perdido, nunca mais falou com ninguém. Ele revestia os cabos, o olhar
vazio; sem dizer nada, quase sem mexer- duro como uma pedra, sabe? Disseram que
ele tava curado. E depois, um belo dia, sumiu. Não sei o que aconteceu com ele.
Linhart, Robert (1944- )
Greve na fábrica (L’établi).
Tradução de Miguel Arraes. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980. p 49-50.
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