segunda-feira, 10 de setembro de 2018

O medo é uma engrenagem da fábrica


O medo faz parte da fábrica, é uma engrenagem vital dela.
Para começar, ele tem o rosto de todo esse dispositivo de autoridade, de vigilância e de repressão que nos cerca: guardas, chefes de equipe, contramestres, chefes de setor. O chefe de setor, principalmente. É uma especialidade da Citroen: um chefe de pessoal local que cobre apenas algumas oficinas. Um ‘tira’ oficial, que controla os guardas, mantém em dia as sanções e suspensões, preside as demissões. De calça e paletó, nada tem a ver com a produção: exerce uma função meramente repressiva. O nosso, Junot, como acontece frequentemente, é um antigo militar colonial reformado que entrou para a Citroen. Alcoólatra, cara congestionada, trata os imigrantes como se fossem os indígenas dos “velhos e bons tempos”: com desprezo e raiva. Ainda por cima, imagino, com uma ideia de vingança: fazê-los pagar a perda do Império. Quando anda pela oficina, cada um retifica mais ou menos a postura e finge se concentrar completamente no seu posto; as conversas se interrompem bruscamente e só se escuta o barulho das máquinas. E se você é chamado ao escritório, ou se um contramestre faz um sinal que deseja lhe falar, ou mesmo se um guarda lhe interpela de surpresa no pátio, você sente um pequeno aperto no coração. Tudo isso é conhecido: dentro da fábrica, você está numa sociedade declaradamente policial, à beira da ilegalidade se você é encontrado, mesmo que apenas a alguns metros de seu posto de trabalho ou em um corredor, sem um formulário devidamente assinado por um superior, ou em falta por um defeito de produção, “demissível” de imediato por um empurrão, sujeito à punição por um atraso de alguns instantes ou por uma palavra de impaciência a um chefe de equipe, e mil outras coisas que pairam suspensas sobre a sua cabeça e sobre as quais você nem sonha mas que os guardas, contramestres, chefes de setor e tutti quanti não se esquecem jamais.
Mas o medo é mais que isso: você pode muito bem passar uma jornada inteira sem ver nenhum chefe (porque estão trancados nos seus escritórios, cochilando sobre a papelada ou porque uma reunião imprevista livrou-o milagrosamente deles por algumas horas) e apesar disto você sente que a angústia está sempre presente, no ar, no modo de ser dos que lhe cercam, em você mesmo. Sem dúvida, isso se deve, em parte, ao fato conhecido por todos de que o controle oficial da Citroen é apenas uma parte visível do sistema de policiamento da fábrica. Temos entre nós informantes de todas as nacionalidades e, sobretudo, o sindicato da empresa, o CFT, um bando de fura greves e de falsificadores de eleições. Esse sindicato amarelo é a menina dos olhos da direção: aderir a ele facilita a promoção da chefia e, com frequência, o chefe de setor obriga os trabalhadores imigrantes a aderirem a ele, sob a ameaça de demissão ou de expulsão dos alojamentos da empresa.
Mas mesmo isso não é suficiente para definir completamente nosso medo. Ele é feito de alguma coisa mais sutil e mais profunda. Ele é intimamente ligado ao próprio trabalho.
A linha de montagem, o desfile dos carros, a minutagem dos gestos, todo esse mundo de máquinas no qual a gente se sente a todo momento ameaçado de ‘perder o pé”, de não conseguir, de fracassar, de ser ultrapassado, de ser rejeitado. Ou ferido. Ou morto. O medo supura a fábrica por que a fábrica, no seu nível mais elementar, mais perceptível ameaça permanentemente os homens que ela utiliza. Quando não há chefes à vista e quando nos esquecemos dos delatores, são os carros que nos vigiam pelo seu deslocamento ritmado. São as próprias ferramentas que nos ameaçam à menor desatenção, são as engrenagens da linha de montagem que nos chamam à ordem, brutalmente. A ditadura dos possuidores aqui se exerce, primeiramente, pelo poder total dos objetos.
E quando a fábrica rosna, e as empilhadeiras correm nos corredores, e as pontes rolantes soltam as carrocerias com estrondo, e as ferramentas urram em cadência e que a cada poucos minutos as linhas cospem um novo carro que a esteira rolante carrega, quando tudo isso funciona sozinho e que o barulho acumulado de mil operações repetidas sem interrupção se repercute permanentemente em nossas cabeças, nós nos lembramos que somos homens, e o quanto somos mais frágeis que as máquinas.
Susto do grão de areia.


Linhart, Robert (1944- )


L’établi. Paris: Les éditions de minuit, 1978. p. 66-67. Tradução minha.

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