Alfred Boucher (1850-1934) |
Coletânea de excertos sobre as várias faces do trabalho, escolhidos a partir de muitas e prazerosas leituras de textos literários e afins (com algumas ilustrações)
De fato, ele estava escrevendo ou mais particularmente: traduzia para o “clássico” um grande artigo sobre “Ferimentos por arma de fogo”. O seu último truque intelectual era este do clássico. Buscava nisto uma distinção, uma separação intelectual desses meninos por aí que escrevem contos e romances nos jornais. Ele, um sábio, e sobretudo, um doutor, não podia escrever da mesma forma que eles. A sua sabedoria superior e o seu título “acadêmico” não podiam usar da mesma língua, dos mesmos modismos, da mesma sintaxe que esses poetastros e literatecos. Veio-lhe então a ideia do clássico. O processo era simples: escrevia do modo comum, com as palavras e o jeito de hoje, em seguida invertia as orações, picava o período com vírgulas e substituía incomodar por molestar, ao redor por derredor, isto por esto, quão grande ou tão grande por quamanho, sarapintava tudo de ao invés, empós, e assim obtinha o seu estilo clássico que começava a causar admiração aos seus pares e ao público em geral.
Gostava muito da expressão – às rebatinhas;
usava-a a todo o momento e, quando a punha no branco do papel, imaginava que
dera ao seu estilo uma força e um brilho pascalianos e às suas ideias uma
suficiência transcendente. De noite, lia o padre Vieira, mas logo às primeiras
linhas o sono lhe vinha e dormia sonhando-se “físico”, tratado de mestre, em
pleno Seiscentos, prescrevendo sangria e água quente, tal e qual o doutor
Sangrado.
Lima Barreto (1881-1922)
Triste fim de Policarpo Quaresma [recurso eletrônico]. Brasília: Câmara dos Deputados, Edições Câmara, 2017 .
Como só continuaríamos a viagem três dias depois, [o fotógrafo] convidou-me a visitar com ele uma charqueada onde estavam trabalhando vários grupos de prisioneiros paraguaios: queria fotografá-los.
Conseguimos cavalos
com um jovem oficial brasileiro e seguimos pouco mais de três léguas para
nordeste, até as margens do Arroio Touro Passo. A charqueada era imensa e produzia
carne para suprir o Exército estacionado no Paraguai. Havia mais de mil e
quinhentos homens trabalhando ali; grandes currais abrigavam os animais
trazidos para o abate, comprados ou capturados em toda a região do pampa -
desde Santa Maria até Santana do Livramento. Matava-se dia e noite. Os tanques
de salmoura estavam sempre cheios de mantas de carne e os varais estendiam-se
por centenas e centenas de metros. A maioria dos trabalhadores era constituída
de prisioneiros de guerra e negros escravos. Oficiais do Exército e alguns
franceses dirigiam os trabalhos. Havia um penetrante e enjoativo cheiro de
sangue no ar.
Kuhn colocava a câmara
sobre o tripé e pedia aos homens para fazerem pose, mas sempre como se
estivessem trabalhando; todos atendiam de boa vontade. Era impossível perceber
naqueles homens quaisquer sinais de que fossem prisioneiros. O que mais me
surpreendeu foi ouvi-los, quase todos, conversando em guarani; não imaginava
que o Exército paraguaio tivesse recrutado tantos índios assim. Não havia
uniformes para os prisioneiros; cada qual se vestia com o que tinha à mão. Como
fazia muito calor, era comum vê-los usando apenas um pano enrolado entre as
pernas e na cintura; lembravam velhas gravuras indianas.
Murilo Carvalho (1949
-)
O rastro do Jaguar. São Paulo: Leya, 2009. p 323-324.