Sabine Weiss ( 1924-2021) |
Coletânea de excertos sobre as várias faces do trabalho, escolhidos a partir de muitas e prazerosas leituras de textos literários e afins (com algumas ilustrações)
Estavam perante uma a árvore com alto saiote de ferimentos e cicatrizes. De tão martirizada, a casca da pobrezita crescera na parte inferior em desproporção com a cimeira e dir-se-ia postiço esse revestimento de rugas negras, de algumas das quais brotavam filamentos de “sernambi”.
Firmino meteu a mão
entre um grupo de plantas e de lá tirou o machadinho, que era um dos poucos
diminutivos bem empregados na selva.
_Isto é que é a
seringueira?
_É, é. Ah, você ainda
não conhecia?...
Pôs-se nos bicos dos
pés e começou a lição:
_Olhe, você. Pega-se
no machadinho e se corta assim... Está vendo? Assim, que é para não arrancar a casca
e não fazer mal ao pau. Quando se arranca a casca, os empregados vão fazer
queixa de nós ao seu Juca.
Levou o braço a um
arbusto seco, em cuja extremidade, cortada para o efeito, se borcavam, enfiados
uns nos outros, cinco receptáculos de folha, que tinham base redonda e iam
alargando até a boca, onde não caberia uma mão fechada.
_ Isto são as
tigelinhas. Se espeta elas na seringa, pelas bordas. Assim...É preciso ter
cuidado para que a folha fique segura, senão a tigelinha cai e o leite escorre
todo para fora. Está compreendendo?
_ Estou, estou..
Em cinco pontos
diferentes, todos à mesma altura, em volta do tronco, Firmino golpeou a árvore.
_Cada seringueira
leva tantas tigelinhas conforme for a grossura dela. Uma valente, como aquele
piquiá que você está vendo ali, pode levar sete. Uma assim como esta, leva
cinco ou quatro, se estiver fraca. Corta-se de cima para baixo, e quando se
chega abaixo, o machadinho volta acima, porque a madeira já descansou. Seringueiro
malandro faz mutá, mas aqui é proibido.
_ Que é isso?
_Vamos que eu já
lhe explico. Mutá é fazer um jirau com galho de árvore e ir cortar a
seringueira lá em cima, junto à folha. A princípio, dá mais leite; mas depois,
morre.
A mancha, até agora obscura, da plantaria
rasteira e dos arbustos que prolongavam a sombra em que vivia a terra, adquiria
já seu verde natural. A luz conseguira, enfim, transpassar o cerrado e acendia
agora as suas vistosas lâmpadas em todos os desvãos. E não era só claridade
flutuante, como pó bem peneirado; era o sol que fabricava joias refulgentes nos
troncos das árvores- anéis de diademas que matavam o ar soturno das princesas
da floresta. Aquecia e ia-se tornando mais enigmático o silêncio.
Ferreira de Castro
(1898-1974)
A Selva. Obras
completas, volume 1. Rio de Janeiro: Editora José Aguilar, 1958, p 152-3.
Por falar em inspiração lenta, levei apenas dois anos para escrever O nome da rosa, pela simples razão de que não precisei fazer nenhuma pesquisa sobre a Idade Média. Como disse, minha tese de doutorado foi sobre estética medieval, e dediquei estudos posteriores à Idade Média. Ao longo dos anos, visitei muitas abadias românicas, catedrais góticas e assim por diante. Quando decidi escrever o romance, foi como se abrisse um grande armário no qual, durante décadas, vinha depositando meus arquivos medievais. Todo aquele material estava ali aos meus pés e eu só tive de selecionar o que precisava. Para os romances subsequentes, a situação foi diferente (embora, se selecionasse determinado assunto, era porque eu já tinha alguma familiaridade com ele). Foi por isso que demorei mais para escrever meus romances posteriores- oito anos para O pêndulo de Foucault, seis para A ilha do dia anterior e para Baudulino. [...]
O que faço durante os
anos de gestação literária? Coleciona documentos; visito lugares e desenho
mapas; tomo nota de plantas de edifícios. Ou as vezes de um navio, como foi o
caso de A ilha do dia anterior; e
esboço o rosto dos personagens. Para O nome
da rosa, fiz retratos de todos os monges sobre quem escrevi. Passo esses
anos preparatórios uma espécie de castelo encantado – ou se preferirem, num
estado de retiro autista. Ninguém sabe o que estou fazendo, nem a minha família.
Dou a impressão de realizar uma série de atividades distintas, mas estou sempre
concentrado na captura de ideias, imagens e palavras para minha história. [...]
Na preparação de O pêndulo de Foucault, passei
noite após noite, até a hora do encerramento, andando pelos corredores do
Conservatoire des Arts et Métiers, onde sucedem alguns dos principais eventos
de minha história.
[...] Para narrar
algo, você começa como uma espécie de demiurgo criador de um mundo – um mundo
que precisa ser o mais fiel possível, de modo que você possa locomover-se nele
com total segurança.
[...] Durante os
preparativos para a criação de A ilha do
dia anterior, evidentemente viajei para os Mares do Sul, para a exata
localização geográfica onde o livro se passa, a fim de contemplar as cores da água
e do céu em horas diferentes do dia, além dos matizes dos peixes e dos corais. Mas
também passei dois ou três anos estudando os desenhos e os modelos de embarcações
da época, para descobrir as dimensões de uma cabine ou de um compartimento e
para saber como locomover-se de uma até o outro.
Umberto Eco
(1932-2016)
Confissões de um jovem romancista. Tradução de
Marcelo Pen. São Paulo: Cosac Naify, 2013, p 13 a 18.
Pelo fato de, em sua boa-fé simplória, a classe operária ter-se deixado doutrinar, pelo fato de, com sua impetuosidade inata, ter-se precipitado às cegas no trabalho e na abstinência, a classe capitalista viu-se condenada à preguiça e aos prazeres forçados, à improdutividade e aos superconsumismo. Mas se o sobretrabalho do operário amortalha sua carne e estraçalha seus nervos, também é fecundo em dores para o burguês.
A abstinência à qual
se condena a classe produtora obriga os burgueses a se dedicarem ao superconsumo
dos produtos manufaturados desordenadamente. No começo da produção capitalista,
há um ou dois séculos, o burguês era um homem acomodado, de hábitos razoáveis e
ordeiros, contentava-se com sua mulher, ou quase isso, bebia e comia na medida
de sua sede e de sua fome. Deixava aos cortesãos as nobres virtudes da vida
depravada. Hoje, não há filho de novo rico que não se sinta obrigado a
desenvolver a prostituição e a mercurializar seu corpo a fim de dar um sentido
ao labor que se impõem os operários das minas de mercúrio; não há burguês que não
se empanturre de capão com trufas e de Lafitte a fim de encorajar os criadores
de La Flèche e os vinicultores do Bordelais. Nessa atividade, o organismo
depaupera-se rapidamente, os cabelos caem, os dentes desgastam-se, o tronco
deforma-se, o ventre retorce-se, a respiração embaraça-se, os movimentos ficam
pesados, as articulações emperram, as falanges endurecem. [...]
As mulheres “da
sociedade” levam uma vida de mártires. Para provar e dar sentido às toaletes feéricas
que os costureiros se matam fazendo, de manhã à noite elas mudam de vestido;
durante horas entregam suas cabeças ocas aos artistas capilares que, a todo
preço, querem dar largas a suas paixões pelos andaimes de falsos carrapitos. Encerradas
em seus espartilhos, apertadas em suas botas, decotadas a ponto de fazer corar
um frade de pedra, rodam noites inteiras em seus bailes de caridade a fim de
juntar alguns centavos para os pobres. Santas almas!
A fim de desempenhar
sua dupla função social de não produtor e superconsumidor, o burguês teve não
apenas de violentar seus modestos gostos, perder seus hábitos laboriosos de há
dois séculos e entregar-se ao luxo desenfreado, a indigestões e às depravações
sifilíticas, como também teve de subtrair do trabalho produtivo uma enorme
massa de homens a fim de conseguir auxiliares[...]
A toda essa classe
doméstica, cuja grandeza indica o grau alcançado pela civilização capitalista,
deve-se acrescentar a numerosa classe dos infelizes dedicados exclusivamente à
satisfação dos gostos dispendiosos e fúteis das classes ricas, os lapidadores
de diamantes, bordadeiras, rendeiras, encadernadores de luxo, costureiras de
luxo, decoradoras das casas de veraneio etc.
Uma vez acocorada na
preguiça absoluta e desmoralizada pelo gozo forçado, a burguesia acomodou-se a
seu novo tipo de vida. E toda mudança ela encara com horror. A imagem das miseráveis
condições de existência, aceitas com resignação pela classe operária, e a da
degradação orgânica gerada pela paixão depravada do trabalho aumenta ainda mais
sua repulsa diante de toda imposição do trabalho e de qualquer restrição dos
prazeres.
Paul Lafargue (1842-1911)
O direito à preguiça.
Tradução de J. Teixeira Coelho Netto. São Paulo: Hucitec/Unesp, 1999, p 90-94