domingo, 31 de janeiro de 2021

Viver de morada

Um dia meu irmão Zezé perguntou ao nosso pai o que era viver de morada. Por que não éramos também donos daquela terra, se lá havíamos nascido e trabalhado desde sempre. Por que a família Peixoto, que não morava na fazendo, era dita dona. Por que não fazíamos daquela terra nossa, já que dela vivíamos, plantávamos as sementes, colhíamos o pão. Se dali retirávamos nosso sustento.

Esse dia vive em minha memória. Não se apaga nem se afasta ainda que envelheça. O sol era tão forte que quase tudo ao alcance de minha visão estava branco, refletindo a luz intensa do céu sem nuvens. Meu pai retirou o chapéu, o calor fazia minar de seu corpo um suor grosso que lhe lavava o rosto, escorrendo pela fronte e pelas têmporas. Escorria pelo lado anterior de seus braços, formando grande manchas em sua camisa surrada. O barro cobria sua calça, sua enxada, seus braços, o chapéu largo em suas mãos. Eu atirava milho e restos de comida para as galinhas. “Pedir morada é quando você não sabe para onde ir, porque não tem trabalho de onde vem. Não tem de onde tirar o sustento”, apertou os olhos, olhando para a cova diante de seus pés, “aí você pergunta pra quem tem e quem precisa de gente para trabalho: “Moço, o senhor me dá morada?”. De pronto seu olho se ergueu para meu irmão: “Trabalhe mais e pense menos. Seu olho não deve crescer para o que não é seu”. Apoiou a enxada em pé no solo, segurando a ponta do seu cabo com um dos braços. “O documento da terra não vai lhe dar mais milho, nem feijão. Não vai botar comida na nossa mesa.” Retirou papel e fumo do bolso e começou a fazer um cigarro. “Está vendo este mundão de terra aí? O olho cresce. O homem quer mais. Mas suas mãos não dão conta de trabalhar ela toda, dão? Você sozinho consegue trabalhar essa tarefa que a gente trabalha. Esta terra que cresce mato, que cresce a caatinga, o buriti, o dendê não é nada sem trabalho. Não vale nada. Pode valer até para essa gente que não trabalha. Que não abre uma cova, que não sabe semear e colher. Mas para gente como a gente a terra só tem valor se tem trabalho. Sem ele a terra é nada."

 

 

Itamar Vieira Junior (1979-)

 

Torto Arado. São Paulo: Todavia, 2019, p. 185-186.

 

quarta-feira, 27 de janeiro de 2021

Pescadores de Ponta Negra

Alzeni Carla do Nascimento

 

Supridores de supermercado

[...] Naquele momento, não se sentia inferior, como sempre acabava acontecendo na rotina estafante do supermercado, em cujo depósito se matava desmontando as montanhas de caixas, pacotes e fardos, para catar os produtos que estivessem acabando nas prateleiras, para depois tornar a montar as montanhas de caixas, pacotes e fardos, para em seguida ir colocar os produtos em seus respectivos lugares nas prateleiras, para que então os clientes viessem e comodamente os pegassem e os jogassem nos carrinhos de compras, sem imaginar a enorme quantidade de suor derramado, a enorme quantidade de energia gasta para que tudo estivesse ali, à mão, e sem imaginar, muito menos, que a remuneração obscena correspondente àquele trabalho todo não supria muitas vezes as necessidades mais básicas de um ser humano, mas sempre prontos a enchê-los dos mais baixos desaforos se uma única etiqueta de preço estivesse fora do lugar, se um único produto estivesse em falta, ao que ele só podia baixar a cabeça, porque, afinal, o cliente tinha sempre razão.

 

 

José Falero (1987-)


Os supridores. São Paulo: Todavia, 2020, p 134

terça-feira, 5 de janeiro de 2021

Nos tempos dos faraós

José, o aprendiz: Não conheço nenhum ofício, nem o de sapateiro nem o de colador de papéis, nem o de oleiro. Como animar-me, pois, a andar no meio daqueles que estão sentados exercendo o seu ofício, quem fazendo uma coisa, quem outra? Como me atreverei a assumir a responsabilidade de ver e fiscalizar?

Mont-kav, o superintendente: Acreditas que eu saiba o ofício de sapateiro e de colador de papéis? Não sei fazer nem vasos, nem cadeiras, nem ataúdes. Não é necessário que eu saiba, ninguém exige isso de mim, muito menos aqueles que sabem fazer essas coisas. Porque a minha origem é diferente da deles e outro o meu jaez; eu possuo um espírito universal e por isso fui feito superintendente. Os operários nas suas oficinas não te vão perguntar o que sabes, senão quem és, porque a isto está unida uma outra força bem diversa, destinada exatamente à vigilância e fiscalização. Aquele que, como tu, sabe falar diante do senhor, tendo arte de, com belas palavras, exprimir pensamentos delicados, não deve ficar sentado e com a cabeça curvada sobre um objeto único, mas deve caminhar ao meu lado entre os trabalhadores. Pois na palavra e não na mão está o comando e o descortino.

 

Thomas Mann (1875-1955)

 

José e seus irmãos. Volume 2, José no Egito. Tradução de Agenor Soares de Moura. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983.p 202-3.