Um dia meu irmão Zezé perguntou ao nosso pai o que era viver de morada. Por que não éramos também donos daquela terra, se lá havíamos nascido e trabalhado desde sempre. Por que a família Peixoto, que não morava na fazendo, era dita dona. Por que não fazíamos daquela terra nossa, já que dela vivíamos, plantávamos as sementes, colhíamos o pão. Se dali retirávamos nosso sustento.
Esse dia vive em minha memória. Não se apaga
nem se afasta ainda que envelheça. O sol era tão forte que quase tudo ao
alcance de minha visão estava branco, refletindo a luz intensa do céu sem
nuvens. Meu pai retirou o chapéu, o calor fazia minar de seu corpo um suor
grosso que lhe lavava o rosto, escorrendo pela fronte e pelas têmporas.
Escorria pelo lado anterior de seus braços, formando grande manchas em sua
camisa surrada. O barro cobria sua calça, sua enxada, seus braços, o chapéu
largo em suas mãos. Eu atirava milho e restos de comida para as galinhas. “Pedir
morada é quando você não sabe para onde ir, porque não tem trabalho de onde vem.
Não tem de onde tirar o sustento”, apertou os olhos, olhando para a cova diante
de seus pés, “aí você pergunta pra quem tem e quem precisa de gente para
trabalho: “Moço, o senhor me dá morada?”. De pronto seu olho se ergueu para meu
irmão: “Trabalhe mais e pense menos. Seu olho não deve crescer para o que não é
seu”. Apoiou a enxada em pé no solo, segurando a ponta do seu cabo com um dos
braços. “O documento da terra não vai lhe dar mais milho, nem feijão. Não vai
botar comida na nossa mesa.” Retirou papel e fumo do bolso e começou a fazer um
cigarro. “Está vendo este mundão de terra aí? O olho cresce. O homem quer mais.
Mas suas mãos não dão conta de trabalhar ela toda, dão? Você sozinho consegue
trabalhar essa tarefa que a gente trabalha. Esta terra que cresce mato, que
cresce a caatinga, o buriti, o dendê não é nada sem trabalho. Não vale nada.
Pode valer até para essa gente que não trabalha. Que não abre uma cova, que não
sabe semear e colher. Mas para gente como a gente a terra só tem valor se tem
trabalho. Sem ele a terra é nada."
Itamar Vieira Junior (1979-)
Torto Arado. São Paulo: Todavia, 2019, p. 185-186.