sexta-feira, 30 de agosto de 2019

O mal nas práticas ordinárias de trabalho

O mal [...] é tolerar a mentira, não denunciá-la e, mais do que isso, contribuir à sua produção e à sua difusão. O mal também é tolerar, não denunciar e participar da injustiça e do sofrimento impostos aos outros. Para começar, trata-se das infrações cada vez mais frequentes e cínicas à legislação trabalhista: empregar pessoas sem carteira de trabalho para não pagar a Previdência Social e poder demiti-las, sem penalidades, no caso de acidentes do trabalho (como no setor da construção civil ou nas empresas de mudança); empregar pessoas sem pagar o que lhes é devido (como nas oficinas semi clandestinas de confecção); exigir um trabalho cuja duração ultrapassa as autorizações legais (como no transporte rodoviário, onde se obriga homens a dirigirem por mais de 24 horas seguidas), etc. O mal também são todas as injustiças relacionadas com as alocações discriminatórias e manipuladoras a postos de trabalho mais perigosos ou penosos, deliberadamente cometidas e publicamente exibidas; é o desprezo, são as grosserias e as obscenidades dirigidas às mulheres. O mal é ainda a manipulação deliberada da ameaça, da chantagem e de insinuações contra os trabalhadores, para desestabilizá-los psicologicamente, e levá-los a cometer erros para, em seguida, usar estes atos como pretexto para demiti-los por justa causa, como se vê frequentemente com os executivos. São também as práticas correntes de demissões sem aviso prévio, sem conversas, principalmente entre executivos que, de repente, numa manhã não podem entrar no seu escritório pois a fechadura da porta foi trocada e que são convidados a ir buscar seu salário, assinar sua demissão e pegar seus objetos pessoais amontoados na porta da saída. O mal é também a participação em planos sociais, isto é, nas demissões regadas de falsas promessas de assistência ou ajuda para encontrar novo emprego, ou, ao contrário associadas a justificativas caluniosas sobre a incompetência, a inabilidade, a lentidão, a falta de iniciativa, etc. da vítima. O mal é ainda manipular a ameaça e a precariedade para submeter o outro, para infligir-lhe sevícias, por exemplo, sexuais, ou obriga-lo a fazer coisas que ele moralmente reprova e, de um modo geral, para lhe causar medo.
A existência de todos esses sofrimentos e essas injustiças impostas a outrem são conhecidas em todas as sociedades, inclusive democráticas. Nós qualificamos todas essas condutas como “mal” quando elas são:
-erigidas em sistema de direção, de comando, de organização ou de gestão, isto é, quando elas supõem a implicação de todos a título de vítimas, de carrascos ou de vítimas e carrascos alternativa ou simultaneamente;
-públicas, banalizadas, conscientes, deliberadas, admitidas ou reivindicadas e não clandestinas, ocasionais ou excepcionais, ou até quando elas são consideradas valiosas.
Atualmente, em numerosas empresas, o que antigamente era considerado como falta moral da qual se podia esquivar, e até se opor a preço de uma coragem não excepcional, tende a se tornar norma de um sistema de administração das relações humanas no mundo do trabalho: estamos então no universo do mal, do qual tentaremos analisar o funcionamento.


Dejours, Christophe (1949- )


Souffrance en France, la banalisation de l’injustice sociale. Paris: Éditions du Seuil, 1998. p 93-4. (tradução minha)

sexta-feira, 16 de agosto de 2019

Sobre escrever




Quem me obriga a escrever? O mistério é esse:
ninguém, e no entanto a força me impelindo.


Escrever não é quase sempre pintar com palavras?


Estou escrevendo porque não sei o que fazer de mim.


Quem sabe, também eu poderia não escrever.
Como é infinitamente mais ambicioso. É quase inalcançável.





Clarice Lispector (1920-1977)




As palavras/Curadoria de Roberto Correa dos Santos. Rio de Janeiro: Rocco, 2013. pp 266,11,295.

Paz e liberdade


Quero paz e liberdade
Sossego e fraternidade
Na nossa pátria natal
Desde a cidade ao deserto
Quero o operário liberto
Da exploração patronal.


Patativa de Assaré (1909-2002)


Carvalho, Gilmar de. Patativa do Assaré: um poeta cidadão. São Paulo: Expressão Popular, 2011. p 79.

terça-feira, 13 de agosto de 2019

Escritores


Há duas espécies de escritores. Aqueles que são e aqueles que não são. Nos primeiros, a forma e o conteúdo se harmonizam como corpo e alma; nos segundos, a forma e o conteúdo se ajustam como a roupa sobre o corpo.






Karl Kraus (1874-1936)


Aforismos. Tradução e organização de Renato Zwick. Porto Alegre: Arquipélago Editorial, 2010. p 69.



Aplausos


Rir da vaidade dos atores, de sua necessidade de aplausos e afins é ridículo. As pessoas de teatro precisam do aplauso para representar melhor; e para isso, também basta o aplauso fingido. O sentimento de felicidade que alguns atores mostram quando são aplaudidos por aqueles que pagaram para fazê-lo é uma prova de seu gênio artístico. Dificilmente alguém teria se tornado um grande ator se o público tivesse vindo ao mundo sem mãos.



Karl Kraus (1874-1936)


Aforismos. Tradução e organização de Renato Zwick. Porto Alegre: Arquipélago Editorial, 2010. p 66-7.


sexta-feira, 2 de agosto de 2019

Atividade: repetição e criação


Se olharmos para o comportamento humano, para a sua atividade, de um modo geral, é fácil verificar a possibilidade de diferenciar dois tipos principais. Um tipo de atividade pode-se denominar de reconstituidor ou reprodutivo. Está intimamente ligado à memória; sua essência consiste em reproduzir ou repetir meios de conduta anteriormente criados e elaborados ou ressuscitar marcas de impressões precedentes. Quando me lembro da casa onde passei a minha infância ou de países distantes que visitei, reproduzo as marcas daquelas impressões que tive na primeira infância ou à época das viagens. Da mesma forma, quando faço desenhos de observação, quando escrevo ou faço algo seguindo determinado modelo, reproduzo somente o que existe diante de mim ou o que assimilei e elaborei anteriormente. O comum em todos esses casos é que a minha atividade nada cria de novo e a sua base é a repetição mais ou menos precisa daquilo que existiu.
É fácil compreender o enorme significado da conservação da experiência anterior para a vida do homem, o quanto ela facilita sua adaptação ao mundo que o cerca, ao criar e elaborar hábitos permanentes que se repetem em condições iguais.
A base orgânica dessa atividade reprodutiva ou da memória é a plasticidade da nossa substância nervosa. Chama-se plasticidade à propriedade de uma substância que permite alterá-la e conservar as marcas dessa alteração, Assim, nesse sentido, a cera tem mais plasticidade, por exemplo, do que a água ou o ferro, pois admite modificação mais facilmente do que o ferro e conserva a marca desta melhor que a água. Somente se tomadas juntas essas duas propriedades formam a plasticidade da nossa substância nervosa. Nosso cérebro e nossos nervos, que possuem uma enorme plasticidade, modificam com facilidade sua estrutura mais tênue sob diferentes influências e, se os estímulos são suficientemente fortes ou repetidos com bastante frequência, conservam a marca dessas modificações. No cérebro ocorre algo semelhante ao que acontece a uma folha de papel quando a dobramos ao meio. No local da dobra, fica a marca resultante da modificação feita, bem como a predisposição para repetir essa modificação no futuro. Basta, agora, soprar essa folha de papel para que dobre no mesmo local em que ficou a marca. O mesmo ocorre com a marca deixada pela roda na terra fofa: forma-se uma trilha que fixa as modificações produzidas pela roda, facilitando o seu deslocamento no futuro. De modo semelhante, em nosso cérebro, estímulos fortes ou que se repetem com frequência abrem novas trilhas.
Dessa forma nosso cérebro mostra-se um órgão que conserva nossa experiência anterior e facilita sua reprodução.
Entretanto, caso a atividade do cérebro fosse limitada somente à conservação da experiência anterior, o homem seria capaz de se adaptar, predominantemente, às condições habituais e estáveis do meio que o cerca. Todas as modificações novas e inesperadas no meio, ainda não vivenciadas por ele na sua experiência anterior, não poderiam, nesse caso, provocar uma reação necessária de adaptação. Junto à conservação da experiência anterior, o cérebro possui ainda uma outra função não menos importante.
Além da atividade reprodutiva, é fácil notar no comportamento humano outro gênero de atividade, mais precisamente, a combinatória ou criadora. Quando, na imaginação, esboço para mim mesmo um quadro do futuro, digamos, a vida do homem no regime socialista, ou o quadro de um passado longínquo de vida e luta do homem pré-histórico, em ambos não reproduzo as impressões que tive a oportunidade de sentir alguma vez. Não estou simplesmente restaurando a marca de excitações anteriores que chegaram ao meu cérebro, pois nunca vi, realmente, nem esse passado nem esse futuro. Apesar disso, posso ter a minha ideia, a minha imagem, o meu quadro.
Toda atividade do homem que tem como resultado a criação de novas imagens ou ações, e não a reprodução de impressões ou ações anteriores da sua experiência, pertence a esse segundo gênero de comportamento criador ou combinatório. O cérebro não é apenas o órgão que conserva e reproduz nossa experiência anterior, mas também o que combina e reelabora, de forma criadora, elementos da experiência anterior, erigindo novas situações e novos comportamentos. Se a atividade do homem se restringisse à mera reprodução do velho, ele seria um ser voltado apenas para o passado, adaptando-se ao futuro apenas na medida em que este reproduzisse aquele. É exatamente a atividade criadora que faz do homem um ser que se volta para o futuro, erigindo-o e modificando o seu presente.
A psicologia denomina imaginação ou fantasia a essa atividade criadora baseada na capacidade de combinação de nosso cérebro. Comumente, entende-se por imaginação ou fantasia algo diferente do que a ciência pressupõe com essas palavras. No cotidiano, designa-se como imaginação ou fantasia tudo o que não é real, que não corresponde à realidade e, portanto, não pode ter qualquer significado prático sério. Na verdade, a imaginação, base de toda atividade criadora, manifesta-se, sem dúvida, em todos os campos da vida cultural, tornando igualmente possível a criação artística, a científica e a técnica. Nesse sentido, tudo o que nos cerca e foi feito pelas mãos do homem, todo o mundo da cultura, diferentemente do mundo da natureza, tudo isso é produto da imaginação e da criação humana que nela se baseia [...].
Daí é fácil perceber que a nossa ideia cotidiana de criação não corresponde plenamente à compreensão científica dessa palavra. No entendimento comum, criação é o destino de alguns eleitos, gênios, talentos que criaram grandes obras artísticas, fizeram notáveis descobertas científicas ou inventaram alguns aperfeiçoamentos na área técnica. Reconhecemos de bom grado e prontamente a criação na atividade de Tostoi, Edson e Darwin, porém é corriqueiro pensarmos que na vida de uma pessoa comum não haja criação.
No entanto, como já foi dito, esse ponto de vista não é correto. Segundo uma analogia feita por um cientista russo, a eletricidade age e manifesta-se não só onde há uma grandiosa tempestade e relâmpagos ofuscantes, mas também na lâmpada de uma lanterna de bolso. Da mesma forma, a criação, na verdade, não existe apenas quando se criam grandes obras históricas, mas por toda parte em que o homem imagina, combina, modifica e cria algo novo, mesmo que esse novo se pareça a um grãozinho, se comparado às criações dos gênios. Se levarmos em conta a presença da imaginação coletiva, que une todos esses grãozinhos não raro insignificantes da criação individual, veremos que grande parte de tudo o que foi criado pela humanidade pertence exatamente ao trabalho criador anônimo e coletivo de inventores desconhecidos.



Lev Semionovitch Vigotski (1896-1934)

Imaginação e criação na infância. Tradução e revisão técnica de Zoia Prestes e Elizabeth Tunes. São Paulo: Expressão Popular, 2018, p 13-17.


Homens trabalhando

Victor Arnautoff (1896-1979)

Britadores

Quarry Workers, 1978
Richard V. Correll (1904-1990)