Era um homem alto, de costas largas, a
barriga esticava só para a frente a camiseta de malha. Careca em cima, cabelo
grisalho, curto e bem cerrado nas têmporas, formando um arco por cima das
orelhas grandes. Tinha no geral um jeito manso, de quem reprimia alguma coisa
no corpo volumoso. Havia trabalhado em obras, em algumas construções
importantes da cidade, durante quase vinte anos [....]. Até que um dia surgiram
umas irritações em seus pés, abriram-se umas feridas que formaram buracos feios
e cada vez mais fundos.
Pelo visto, aconteceu que de tanto trabalhar descalço,
sem luvas, ele pegou uma alergia ao cimento cru, ou quem sabe a algum componente
do cimento. Não importa, tanto faz, nenhum médico sabia dizer, davam nomes
diferentes, esquisitos. Uma alergia tão violenta que nem precisava encostar no
cimento: bastava chegar perto, bastava um bafo de ar polvilhar um cisco a alguns
centímetros da sua perna, ou mesmo do seu braço, e logo vinham os pruridos, as
supurações, e a pele dos pés e das canelas ardia em fogo.
Dali para a frente não adiantou trabalhar de
botas de borracha, mesmo de cano alto até quase os joelhos e com meia por
baixo. Não adiantou cobrir o nariz e a boca com aquelas máscaras de cirurgião
[...]. Tentou muitas vezes, experimentou tudo o que pôde, até os passes de um médico
espírita ele pagou. Estava no cheiro, vinha num gás, quem sabe, ou mesmo no brilho,
no reflexo do cimento, vai ver era uma espécie de onda que irradiava daquele pó,
corria rente ao chão, era uma vibração que atravessava tudo e depois entrava na
pele.
O cimento até então era o seu trabalho, era o
seu dia- obediente na mistura, dócil no tempo de dar a liga, o cimento era
sempre o mesmo, não mudava, era o seu salário, o seu patrão. Estava por trás de
tudo, por baixo de tudo, e era na direção do cimento que seus braços compridos
se moviam: armar o pequeno lago de água limpa no alto do montinho de cimento e
areia, depois misturar tudo com aquela água, em golpes medidos de uma enxada ou
pá, e por último, com a ajuda da pá, encher os baldes ou os carrinhos de mão
com a massa úmida, pesada- às vezes, numa sombra de irritação, num cansaço
antecipado, ele já acordava pensando naquilo, sentia até o cheiro: na hora em
que pegava o açúcar na colher para pôr dentro da caneca de café com leite,
adivinhava no ouvido o chiado da lâmina da pá ao ser enfiada no mento de areia.
[...] Quando veio a alergia e quando as
proteções, os cuidados e os remédios foram sendo derrotados um a um, e quando
ficou mais do que claro que ele não poderia mais trabalhar, ficou à beira do
desespero. Ainda se lembrava de uma noite inteira que passou acordado, dentro
de casa, as luzes todas apagadas, enquanto os outros dormiam- ora sentava, ora
andava, e passava de um cômodo para outro, no escuro, arrastando os pés
machucados, enquanto os mesmos pensamentos de susto, os mesmos medos, que não
pareciam nem um pouco exagerados e soavam como a coisa mais razoável do mundo,
se repetiam sem parar dentro da sua cabeça.
Parava de andar, olhava para os pés, para as unhas
horríveis, que nem carvões, que nem pedras- e então teve raiva do cimento, teve
raiva dos pés. Depois de mais de vinte anos trabalhando, como podiam fazer
aquilo com ele? Percebeu que era um desatino sentir isso- ter raiva dos pés, do
cimento. Mas afinal, pense bem, o que seria da sua casa, da sua família, da sua
filha, que na época ainda dependia tanto dele? Debruçado na janela aberta,
olhou para o ar escuro da noite, os olhos parados, presos no espaço estreito
entre uma parede lá fora e um muro esfolado, com tijolos à mostra – olhava,
olhava sem atinar com o que ia fazer da sua vida quando o dia nascesse. Olhava
bem fixo, bem fundo para aquela noite encardida e sentia no rosto ora um cheiro
de cinzas, ora um cheiro de podre. Pensava, perguntava, e só um morcego piava a
intervalos, por cima, nuns rodopios compridos, velozes.
Figueiredo, Rubens (1956- )
Passageiro do fim do dia. São Paulo:
Companhia das Letras, 2010. p. 100 102.
Nenhum comentário:
Postar um comentário