quinta-feira, 13 de setembro de 2018

Pensar

Pensar é comum a todos.


Heráclito (em torno de 540 a C - 480 a C)

Les écoles présocratiques. Éditon établi par Jean-Paul Dumont. Paris: Gallimard, 1988, p 91 . Tradução minha.

segunda-feira, 10 de setembro de 2018

O medo é uma engrenagem da fábrica


O medo faz parte da fábrica, é uma engrenagem vital dela.
Para começar, ele tem o rosto de todo esse dispositivo de autoridade, de vigilância e de repressão que nos cerca: guardas, chefes de equipe, contramestres, chefes de setor. O chefe de setor, principalmente. É uma especialidade da Citroen: um chefe de pessoal local que cobre apenas algumas oficinas. Um ‘tira’ oficial, que controla os guardas, mantém em dia as sanções e suspensões, preside as demissões. De calça e paletó, nada tem a ver com a produção: exerce uma função meramente repressiva. O nosso, Junot, como acontece frequentemente, é um antigo militar colonial reformado que entrou para a Citroen. Alcoólatra, cara congestionada, trata os imigrantes como se fossem os indígenas dos “velhos e bons tempos”: com desprezo e raiva. Ainda por cima, imagino, com uma ideia de vingança: fazê-los pagar a perda do Império. Quando anda pela oficina, cada um retifica mais ou menos a postura e finge se concentrar completamente no seu posto; as conversas se interrompem bruscamente e só se escuta o barulho das máquinas. E se você é chamado ao escritório, ou se um contramestre faz um sinal que deseja lhe falar, ou mesmo se um guarda lhe interpela de surpresa no pátio, você sente um pequeno aperto no coração. Tudo isso é conhecido: dentro da fábrica, você está numa sociedade declaradamente policial, à beira da ilegalidade se você é encontrado, mesmo que apenas a alguns metros de seu posto de trabalho ou em um corredor, sem um formulário devidamente assinado por um superior, ou em falta por um defeito de produção, “demissível” de imediato por um empurrão, sujeito à punição por um atraso de alguns instantes ou por uma palavra de impaciência a um chefe de equipe, e mil outras coisas que pairam suspensas sobre a sua cabeça e sobre as quais você nem sonha mas que os guardas, contramestres, chefes de setor e tutti quanti não se esquecem jamais.
Mas o medo é mais que isso: você pode muito bem passar uma jornada inteira sem ver nenhum chefe (porque estão trancados nos seus escritórios, cochilando sobre a papelada ou porque uma reunião imprevista livrou-o milagrosamente deles por algumas horas) e apesar disto você sente que a angústia está sempre presente, no ar, no modo de ser dos que lhe cercam, em você mesmo. Sem dúvida, isso se deve, em parte, ao fato conhecido por todos de que o controle oficial da Citroen é apenas uma parte visível do sistema de policiamento da fábrica. Temos entre nós informantes de todas as nacionalidades e, sobretudo, o sindicato da empresa, o CFT, um bando de fura greves e de falsificadores de eleições. Esse sindicato amarelo é a menina dos olhos da direção: aderir a ele facilita a promoção da chefia e, com frequência, o chefe de setor obriga os trabalhadores imigrantes a aderirem a ele, sob a ameaça de demissão ou de expulsão dos alojamentos da empresa.
Mas mesmo isso não é suficiente para definir completamente nosso medo. Ele é feito de alguma coisa mais sutil e mais profunda. Ele é intimamente ligado ao próprio trabalho.
A linha de montagem, o desfile dos carros, a minutagem dos gestos, todo esse mundo de máquinas no qual a gente se sente a todo momento ameaçado de ‘perder o pé”, de não conseguir, de fracassar, de ser ultrapassado, de ser rejeitado. Ou ferido. Ou morto. O medo supura a fábrica por que a fábrica, no seu nível mais elementar, mais perceptível ameaça permanentemente os homens que ela utiliza. Quando não há chefes à vista e quando nos esquecemos dos delatores, são os carros que nos vigiam pelo seu deslocamento ritmado. São as próprias ferramentas que nos ameaçam à menor desatenção, são as engrenagens da linha de montagem que nos chamam à ordem, brutalmente. A ditadura dos possuidores aqui se exerce, primeiramente, pelo poder total dos objetos.
E quando a fábrica rosna, e as empilhadeiras correm nos corredores, e as pontes rolantes soltam as carrocerias com estrondo, e as ferramentas urram em cadência e que a cada poucos minutos as linhas cospem um novo carro que a esteira rolante carrega, quando tudo isso funciona sozinho e que o barulho acumulado de mil operações repetidas sem interrupção se repercute permanentemente em nossas cabeças, nós nos lembramos que somos homens, e o quanto somos mais frágeis que as máquinas.
Susto do grão de areia.


Linhart, Robert (1944- )


L’établi. Paris: Les éditions de minuit, 1978. p. 66-67. Tradução minha.

quarta-feira, 5 de setembro de 2018

Proibido ser ineficiente: Auschwitz

A casa estava grudada na fábrica. Da janela do dormitório, viam-se as chaminés.
O diretor regressava para casa todo meio-dia, sentava-se ao lado da mulher e de seus cinco filhos, rezava o pai-nosso, almoçava e depois percorria o jardim, as árvores, as flores, as galinhas e os pássaros cantores, mas nem por um instante perdia de vista o bom andamento da produção industrial.
Era o primeiro a chegar na fábrica e o último a ir embora. Respeitado e temido, aparecia a qualquer hora, sem avisar, em qualquer lugar.
Não suportava o desperdício de recursos. Os altos custos e a produtividade baixa amargavam a sua vida. Sentia náuseas com a falta de higiene e com a desordem. Podia perdoar qualquer pecado. A ineficiência, não.
Foi ele quem substituiu o ácido sulfúrico e o monóxido de carbono pelo fulminante gás Zyklon B, foi ele quem criou os fornos crematórios dez vezes mais produtivos que os fornos de Treblinka, foi ele quem conseguiu produzir a maior quantidade de morte no menor tempo e foi ele quem criou o melhor centro de extermínio de toda a história da humanidade.
Em 1947, Rudolf Höss foi enforcado em Auschwitz, o campo de concentração que ele tinha construído e dirigido, entre as árvores em flor às quais havia dedicado alguns poemas.



Galeano, Eduardo (1940-2015)


Espelhos, uma história quase universal. Tradução de Eric Nepomuceno. Porto Alegre, RS: L&PM, 2008, p 280.




A desprezível mão humana


Em 1783, o rei da Espanha decretou que os ofícios manuais não eram desprezíveis.
Até aquele momento, não merecia ser tratado por dom quem tivesse vivido ou vivesse do trabalho de suas mãos, nem quem tivesse pai, mãe ou avós dedicados a ofícios baixos e vis.
Desempenhavam ofícios baixos e vis
os que trabalhavam a terra,
os que trabalhavam a pedra,
os que trabalhavam a madeira,
os que vendiam a varejo,
os alfaiates,
os barbeiros,
os vendedores de especiarias
e os sapateiros.
Esses seres degredados pagavam impostos.
Por seu lado, estavam isentos de impostos
os militares,
os nobres
e os padres.



Galeano, Eduardo (1940-2015)


Espelhos, uma história quase universal. Tradução de Eric Nepomuceno. Porto Alegre, RS: L&PM, 2008, p 168-9.

“Só“ uma depressão nervosa


As carroçarias, os para-lamas, as portas, as capotas são lisas, brilhantes, multicolores. Nós, os operários, somos cinzentos, sujos, esfarrapados. O objeto sugou a cor, não ficou nada para nós. Ele resplandece com todo brilho, o carro que está sendo fabricado. Avança lentamente através das etapas do seu revestimento, enriquecendo-se de acessórios e de cromos, seu interior guarnecido de tecido macio; todas as atenções são para ele. Zomba de nós. Para ele, só para ele, as luzes da grande linha de montagem. Nós, os trabalhadores, estamos envolvidos numa noite invisível.
Como não ter desejo de saquear? Quem, dentre nós, não sonha às vezes em vingar-se desses carros insolentes, tão pacíficos, tão lisos, tão lisos?
De vez em quando alguém não resiste e entra em ação. Christian contou-me a história de um sujeito que fez isso aqui mesmo, na oficina 85, pouco antes da minha chegada. Todo mundo ainda se lembra.
Era um negro, muito forte, que falava francês com dificuldade, mas que conseguia exprimir-se de qualquer jeito. Seu trabalho consistia em aparafusar uma peça do painel de controle com uma chave de fenda. Cinco parafusos a colocar, em cada carro. Numa sexta feira, à tarde, estava no quingentésimo parafuso do dia. De repente, começou a gritar e precipitou-se sobre os para-lamas dos carros, brandindo sua chave de fenda como um punhal. Dilacerou cerca de uma dezena de carroçarias antes que um grupo de blusões brancos e azuis acorresse às pressas para dominá-lo e levá-lo, ofegante e gesticulando, até a enfermaria.
“Que é que aconteceu com ele? ”
_. Deram uma injeção nele e uma ambulância levou ele para o asilo.
_. Nunca mais voltou?
_. Voltou. Ficou no asilo umas três semanas. Depois disso, mandaram ele de volta. Dizendo que não era grave, só uma depressão nervosa. Então a Citroen aceitou ele de novo.
_. Na linha?
_. Não, num trabalho por produtividade, bem perto de onde você trabalhava antes. Ó, o cara revestia cabos ali, ali onde está o português. Não sei o que fizeram com ele no asilo mas ficou estranho. Tava sempre com um ar perdido, nunca mais falou com ninguém. Ele revestia os cabos, o olhar vazio; sem dizer nada, quase sem mexer- duro como uma pedra, sabe? Disseram que ele tava curado. E depois, um belo dia, sumiu. Não sei o que aconteceu com ele.


Linhart, Robert (1944- )

Greve na fábrica (L’établi). Tradução de Miguel Arraes. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980. p 49-50.


Algodão doce

Miro Bacin

Máquina

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Adrian Feferbaum Siemsen