Elas nasceram do ventre úmido da Amazônia, do
norte extremo do Brasil, do estado desgarrado do noticiário chamado Amapá. O país
não as escuta porque perdeu o ouvido para os sons do conhecimento antigo, a
toada de suas cantigas. Muitas desconhecem as letras do alfabeto, mas leem a
mata, a água e o céu. Emergiram dos confins de outras mulheres com o dom de
pegar menino. Sabedoria que não se aprende, não se ensina, nem mesmo se
explica. Acontece apenas. [...]
“Pegar menino é ter paciência” recita a Karipuna
Maria dos Santos Maciel, a Dorica, a mais velha parteira do Amapá. Aos 96 anos,
mais de dois mil índios desembarcaram no mundo pelas suas mãos pequenas, quase
de criança. Dorica -avó, mãe, madrinha de centenas de filhos de pegação - nem
mesmo gosta de possuir o dom. “O dom é assim, nasce com a gente. E não se pode
dizer não” Dorica, a parteira indígena, alarga a língua do colonizador ao
poetar enormidades: “Parteira não tem escolha, é chamada nas horas mortas da
noite para povoar o mundo”.
Como um espectro feminino, ela navega pelos
rios do Oiapoque alumiada apenas por uma lamparina. Viaja acompanhada da irmã
Alexandrina, 66 anos, de quem fez o parto de nove dos 11 filhos. “Mulher e floresta
são uma coisa só”, diz Alexandrina. “A mãe terra tem tudo, como tudo se
encontra no corpo da mulher. Força, coragem, vida e prazer”.
Quando os remos fatiam o rio silencioso, são
perseguidos pelos olhos de lanterna dos jacarés. ”Não tem perigo. Eles só comem
cachorro e sandália” tranquiliza Dorina. Ela lembra os 16 abortos do seu
ventre, impedida de ter um filho seu por desígnios que não lhe cabem indagar. “Tô
cansada”, anuncia. “Queria pedir a Deus o meu aposentamento de parteira”.
Deus é ainda mais sossegado que o Ministro da
Previdência. Até agora não deu resposta ao pedido. Assim, Dorica segue cravando
os pés nus no chão sempre que alcança o destino. Em seguida, acocora-se entre
as coxas da mulher. Alexandrina abraça o corpo da gestante com as pernas, por
trás. Das entranhas do corpo feminino Dorica nada arranca, apenas espera. Puxa
a barriga da mãe, endireitando a criança. Lambuza o ventre com óleo de anta,
arraia ou mucura para apressar as dores. Perfura a bolsa com a unha e corta o
cordão umbilical com a flecha. Ou com os dentes. ”Pegar menino é esperar o
tempo de nascer” ensina. “Os médicos da cidade não sabem e, porque não sabem,
cortam a mulher”.
Por oito dias Dorica abandona a roça de
mandioca. É missão da parteira lavar, cozinhar, puxar o útero toda manhã e toda
tarde para que a mulher fique sã. É obrigação pentear o seio com pente fino e água
de uma cuia branca para que o leite jorre entre os lábios do menino. É
sabedoria aspirar o nariz do bebê com a boca até ouvir o choro. Ao final desse
tempo, Dorica entrega a mulher ao marido: ”O que eu podia fazer por ela eu já
fiz. Agora você tem que cuidar da família”. O marido agradece: “Se eu puder lhe
dar alguma coisa, lhe dô”. E Dorica responde: “Deus dá o pago”. E o diálogo se
encerra. É tudo. E é assim há bem mais de 500 anos.
A mulher só vai abrir a porta da casa depois
de 40 dias. Assim como a criança. Antes de respirar o ar da floresta, é benzida
com água e sal para o espanto dos espíritos maus. Dos mais de dois mil partos,
Dorica só perdeu três. Não passa um dia sem lamentar. “É uma criança que faltou
na comunidade”. No entendimento dos povos da floresta ninguém é substituível.
Ou descartável. A vida que se extinguiu antes de vingar é única
A parteira dá adeus enquanto a canoa some no
rio. A arara a vigia de um galho, um bando de papagaios recorta o céu aos
gritos, uma menina se banha na água do igarapé preparando-se para a escola. É
um dia comum. Dorica pousa a mão no velho coração e, pronunciando palavras
silenciosas, arranca de lá a benção aos que partem. Depois, dá as costas e vai
pitar tabaco enquanto espera a hora em que o quinto filho da última barriguda
da aldeia, a índia Ivaneide Iapará, 33 anos, vai esmurrar a porteira do mundo
pedindo passagem.
Eliane
Brum (1966-)
O olho da rua: uma repórter em busca da literatura da
vida real. 2. ed. r. e ampl. Porto Alegre: Arquipélago Editorial, 2017.p 19-21
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