Entre os saberes que meu pai adquiriu nos
seus cinquenta anos de estrada está uma notável habilidade em organizar cargas
e volumes. Cargas mal distribuídas na carroceria do caminhão podem levar a
tragédias. Meu pai conta de um acidente que ele presenciou no oeste do Pará: Fui o primeiro a chegar na cena do acidente.
O caminhoneiro de tora deve ter dormido e bateu de frente com o ônibus numa
ladeira. As toras devia tá mal amarrada, então uma saiu de cima da carroceria,
arrancou a cabine do caminhão, entrou por dentro do ônibus e saiu lá na
traseira. Tinha 51 pessoas no ônibus. Dava pra sentir o quente do sangue
escorrendo no asfalto. Aquele tempo passava um ônibus por dia por ali, ou a
cada dois dias, então vinha gente até em cima do bagageiro. Foi onde que
aconteceu a tragédia e só sobrou um passageiro vivo. Esse cara que não morreu
ficou louco, passou a vida morando num posto ali perto; as pessoas ajudavam
ele, ele às vezes varria o pátio do posto, às vezes não fazia nada. E os
morador da região fincaram uma cinquenta cruz branca na beira da estrada no
ponto do acidente. Quando fui com a sua mãe pro Pará, nas núpcias, eu cheguei a
tirar uma foto dessas cruz, mas ela jogou fora, ela não gostava.
É preciso, então, saber organizar as coisas
no seu lugar. As demandas das cargas conferiam a ele algo como um doutorado
honoris causa em geometria aplicada. Encher um mero carrinho de supermercado na
frente do meu pai é uma tarefa ingrata, já que qualquer tentativa de
organização está sempre aquém das expectativas cartesianas que ele impõe, como
se a divisão daquele espaço entre caixas de leite, ovos, legumes e produtos de
limpeza fosse uma questão da mais alta importância para o destino da humanidade.
José Henrique
Bortoluci (1984-)
O que é meu. São
Paulo: Fósforo, 2023, p.68-9.