sábado, 26 de outubro de 2024

Eu ouço a América cantando

Ouço a  América cantando, os variados cânticos que eu ouço, 

O dos mecânicos, cada qual cantando o seu como devia ser alegre e forte

O carpinteiro cantando enquanto mede a prancha ou a viga

O pedreiro cantando  o seu quando vai ao trabalho ou volta dele,

O barqueiro cantando o que é seu em seu barco, o grumete cantando no convés dos vapores, 

O sapateiro cantando ao sentar-se na banqueta, o chapeleiro ao levantar-se

A canção do lenhador, a do camponês saindo de manhã, ou na pausa da tarde ou quando os sol se põe,

O adorável cantar da mãe, ou da jovem esposa no trabalho, ou da moça lavando roupa ou na costura,

Cada qual cantando o que lhe diz respeito e nada mais.

Ao dia o que pertence ao dia, à noite a algazarra dos jovens, vigorosa e afável

Cantando a viva voz sua fortes canções melodiosas.


Walt Whitman (1819-1892)

 Tradução de Ivo Barroso

 

gavetadoivo.wordpress.com


 


 

 

 

quinta-feira, 17 de outubro de 2024

A canção tecida

Tece, tece, tece, tece, 

Bem tecida essa canção,

Um a um, fio por fio,

Como faz o tecelão

Que fabrica o seu tecido,

De cambraia de algodão.

Prende os fios coloridos

No labor da tua mão.

Tece, tece, tece, tece,

Bem tecida essa canção, 

Com carinho, com cuidado, 

Com silêncio e solidão.

Tece, tece, que tecendo

Cresce, cresce a fiação,

Urde as formas das estampas,

Firma as cores do padrão, 

Roda a roda, tece, tece, 

Bem tecida essa canção.

Noite e noite, sempre e sempre,

Nunca inútil, nunca em vão,

Dia a dia te aproximas

Mais e mais da perfeição.

Não te falte uma esperança

Nem te falte uma razão

Que tecida por ti mesmo

Faz nascer essa canção.

Tece, tece, muito e muito,

Por dever e obrigação,

(Pois tecer é teu ofício 

De poeta e tecelão).

Tece como se tecesses

Tua morte ou redenção,

Com amor e  sacrifício ,

Rapidez e lentidão,

Muito embora ninguém saiba

Que teceste esta canção 

Com os fios do teu pranto

No tear do coração.


Marcus Morais Accioly






 



terça-feira, 23 de julho de 2024

Bom dia



        

 Madrugou, madrugou

A mancha branca do sol

Acordou o dia

E o dia já levantou


Acorda, meu amor

A usina já tocou

Acorda, é hora

De trabalhar meu amor


Acorda, é hora

O dia veio roubar

Teu sono cansado

É hora de trabalhar


O dia te exige

O suor e o braço

Pra usina do dono

Do teu cansaço


Acorda, meu amor

É hora de trabalhar

 O dia já raiou

É hora de trabalhar


Madrugou, madrugou

A mancha branca do sol

Acordou o dia

E o dia já levantou


Ele sai, ele vai

A usina já tocou

Bom dia, bom dia

Até logo, meu amor





sábado, 20 de julho de 2024

Caminhoneiro

Entre os saberes que meu pai adquiriu nos seus cinquenta anos de estrada está uma notável habilidade em organizar cargas e volumes. Cargas mal distribuídas na carroceria do caminhão podem levar a tragédias. Meu pai conta de um acidente que ele presenciou no oeste do Pará: Fui o primeiro a chegar na cena do acidente. O caminhoneiro de tora deve ter dormido e bateu de frente com o ônibus numa ladeira. As toras devia tá mal amarrada, então uma saiu de cima da carroceria, arrancou a cabine do caminhão, entrou por dentro do ônibus e saiu lá na traseira. Tinha 51 pessoas no ônibus. Dava pra sentir o quente do sangue escorrendo no asfalto. Aquele tempo passava um ônibus por dia por ali, ou a cada dois dias, então vinha gente até em cima do bagageiro. Foi onde que aconteceu a tragédia e só sobrou um passageiro vivo. Esse cara que não morreu ficou louco, passou a vida morando num posto ali perto; as pessoas ajudavam ele, ele às vezes varria o pátio do posto, às vezes não fazia nada. E os morador da região fincaram uma cinquenta cruz branca na beira da estrada no ponto do acidente. Quando fui com a sua mãe pro Pará, nas núpcias, eu cheguei a tirar uma foto dessas cruz, mas ela jogou fora, ela não gostava.

É preciso, então, saber organizar as coisas no seu lugar. As demandas das cargas conferiam a ele algo como um doutorado honoris causa em geometria aplicada. Encher um mero carrinho de supermercado na frente do meu pai é uma tarefa ingrata, já que qualquer tentativa de organização está sempre aquém das expectativas cartesianas que ele impõe, como se a divisão daquele espaço entre caixas de leite, ovos, legumes e produtos de limpeza fosse uma questão da mais alta importância para o destino da humanidade.

 

José Henrique Bortoluci (1984-) 

 

 

O que é meu. São Paulo: Fósforo, 2023, p.68-9.

Caçador de ratos

Rembrandt (1606-1669)

 

domingo, 25 de fevereiro de 2024

Profissão e ofício de Dom Quixote por ele mesmo


[...] E quero que saiba vossa reverência que eu sou o cavaleiro da Mancha, chamado Dom Quixote, e é meu ofício e exercícios andar pelo mundo reparando afrontas e desfazendo agravos.

 

[...] Eu, meus caros senhores, sou cavaleiro andante, que tem as armas por ofício e professa o socorro dos necessitados e desvalidos.

 

[...] Vos prometo meu socorro e amparo, como me obriga minha profissão que não é outra que defender os desvalidos e necessitados.

 

[...] Aqui se enquadra o exercício de minha profissão: desfazer opressões e socorrer os miseráveis.

 

[...] Pois o negócio principal de minha profissão é perdoar os humildes e castigar os soberbos, digo, socorrer os miseráveis e destruir os cruéis.

 

Miguel de Cervantes Saavedra (1547-1616)

 


Dom Quixote de la Mancha. Tradução e notas de Ernani Ssó. Penguin, Companhia das Letras[U1] 

 

https://itaudeminas.mg.gov.br/arquivos/ere/livros/Dom-Quixote-Miguel-de-Cervantes.pdf


 [U1]