Gilvan Samico ( 1928-2013) |
Coletânea de excertos sobre as várias faces do trabalho, escolhidos a partir de muitas e prazerosas leituras de textos literários e afins (com algumas ilustrações)
Ouço a América cantando, os variados cânticos que eu ouço,
O dos mecânicos, cada qual cantando o seu como devia ser alegre e forte
O carpinteiro cantando enquanto mede a prancha ou a viga
O pedreiro cantando o seu quando vai ao trabalho ou volta dele,
O barqueiro cantando o que é seu em seu barco, o grumete cantando no convés dos vapores,
O sapateiro cantando ao sentar-se na banqueta, o chapeleiro ao levantar-se
A canção do lenhador, a do camponês saindo de manhã, ou na pausa da tarde ou quando os sol se põe,
O adorável cantar da mãe, ou da jovem esposa no trabalho, ou da moça lavando roupa ou na costura,
Cada qual cantando o que lhe diz respeito e nada mais.
Ao dia o que pertence ao dia, à noite a algazarra dos jovens, vigorosa e afável
Cantando a viva voz sua fortes canções melodiosas.
Walt Whitman (1819-1892)
Tradução de Ivo Barroso
gavetadoivo.wordpress.com
Tece, tece, tece, tece,
Bem tecida essa canção,
Um a um, fio por fio,
Como faz o tecelão
Que fabrica o seu tecido,
De cambraia de algodão.
Prende os fios coloridos
No labor da tua mão.
Tece, tece, tece, tece,
Bem tecida essa canção,
Com carinho, com cuidado,
Com silêncio e solidão.
Tece, tece, que tecendo
Cresce, cresce a fiação,
Urde as formas das estampas,
Firma as cores do padrão,
Roda a roda, tece, tece,
Bem tecida essa canção.
Noite e noite, sempre e sempre,
Nunca inútil, nunca em vão,
Dia a dia te aproximas
Mais e mais da perfeição.
Não te falte uma esperança
Nem te falte uma razão
Que tecida por ti mesmo
Faz nascer essa canção.
Tece, tece, muito e muito,
Por dever e obrigação,
(Pois tecer é teu ofício
De poeta e tecelão).
Tece como se tecesses
Tua morte ou redenção,
Com amor e sacrifício ,
Rapidez e lentidão,
Muito embora ninguém saiba
Que teceste esta canção
Com os fios do teu pranto
No tear do coração.
Marcus Morais Accioly
Madrugou, madrugou
A mancha branca do sol
Acordou o dia
E o dia já levantou
Acorda, meu amor
A usina já tocou
Acorda, é hora
De trabalhar meu amor
Acorda, é hora
O dia veio roubar
Teu sono cansado
É hora de trabalhar
O dia te exige
O suor e o braço
Pra usina do dono
Do teu cansaço
Acorda, meu amor
É hora de trabalhar
O dia já raiou
É hora de trabalhar
Madrugou, madrugou
A mancha branca do sol
Acordou o dia
E o dia já levantou
Ele sai, ele vai
A usina já tocou
Bom dia, bom dia
Até logo, meu amor
Entre os saberes que meu pai adquiriu nos seus cinquenta anos de estrada está uma notável habilidade em organizar cargas e volumes. Cargas mal distribuídas na carroceria do caminhão podem levar a tragédias. Meu pai conta de um acidente que ele presenciou no oeste do Pará: Fui o primeiro a chegar na cena do acidente. O caminhoneiro de tora deve ter dormido e bateu de frente com o ônibus numa ladeira. As toras devia tá mal amarrada, então uma saiu de cima da carroceria, arrancou a cabine do caminhão, entrou por dentro do ônibus e saiu lá na traseira. Tinha 51 pessoas no ônibus. Dava pra sentir o quente do sangue escorrendo no asfalto. Aquele tempo passava um ônibus por dia por ali, ou a cada dois dias, então vinha gente até em cima do bagageiro. Foi onde que aconteceu a tragédia e só sobrou um passageiro vivo. Esse cara que não morreu ficou louco, passou a vida morando num posto ali perto; as pessoas ajudavam ele, ele às vezes varria o pátio do posto, às vezes não fazia nada. E os morador da região fincaram uma cinquenta cruz branca na beira da estrada no ponto do acidente. Quando fui com a sua mãe pro Pará, nas núpcias, eu cheguei a tirar uma foto dessas cruz, mas ela jogou fora, ela não gostava.
É preciso, então, saber organizar as coisas
no seu lugar. As demandas das cargas conferiam a ele algo como um doutorado
honoris causa em geometria aplicada. Encher um mero carrinho de supermercado na
frente do meu pai é uma tarefa ingrata, já que qualquer tentativa de
organização está sempre aquém das expectativas cartesianas que ele impõe, como
se a divisão daquele espaço entre caixas de leite, ovos, legumes e produtos de
limpeza fosse uma questão da mais alta importância para o destino da humanidade.
José Henrique Bortoluci (1984-)
O que é meu. São
Paulo: Fósforo, 2023, p.68-9.
[...] E quero que
saiba vossa reverência que eu sou o cavaleiro da Mancha, chamado Dom Quixote, e
é meu ofício e exercícios andar pelo mundo reparando afrontas e desfazendo
agravos.
[...] Eu, meus
caros senhores, sou cavaleiro andante, que tem as armas por ofício e professa o
socorro dos necessitados e desvalidos.
[...] Vos prometo
meu socorro e amparo, como me obriga minha profissão que não é outra que
defender os desvalidos e necessitados.
[...] Aqui se enquadra
o exercício de minha profissão: desfazer opressões e socorrer os miseráveis.
[...] Pois o
negócio principal de minha profissão é perdoar os humildes e castigar os
soberbos, digo, socorrer os miseráveis e destruir os cruéis.
Miguel de Cervantes Saavedra (1547-1616)
Dom Quixote de la Mancha. Tradução e notas de Ernani Ssó. Penguin, Companhia
das Letras[U1]
https://itaudeminas.mg.gov.br/arquivos/ere/livros/Dom-Quixote-Miguel-de-Cervantes.pdf