quinta-feira, 27 de março de 2025

Primeiro encontro entre espanhóis e povos originários na América do Norte

[...] No outro dia seguimos adiante, indo a outra casa, onde comiam as mesmas coisas, mas onde já apresentaram uma nova maneira de nos receber. Estes [indígenas] não vieram ao nosso encontro, simplesmente colocaram o que queriam nos dar no meio da casa e sentaram-se em volta, virados para a parede, com a cabeça baixa e os cabelos cobrindo os olhos. Daqui em diante, começaram a nos dar muitas mantas de couro. Aquela era a melhor gente que encontráramos até então, quanto ao corpo, vivacidade e habilidade. Eram os que melhor nos entendiam e que melhor nos respondiam a tudo que perguntávamos. Nós os chamamos de “o povo das vacas”, porque é ali que mais tem esse animal. Perguntamos a eles de onde haviam trazido o milho e nos disseram que viera de onde o sol se põe. Aproveitaram para contar que nos dois últimos anos haviam enfrentado grande seca, que arruinou quase toda a colheita [...]

Sem saber o que faríamos e que caminho pegar que fosse mais proveitoso, ficamos dois dias com eles. Davam-nos feijão e cabaça. A maneira deles cozinharem as cabaças era tão nova que quis descrevê-la aqui para que se conheça como são diversos e estranhos os talentos e habilidades dos homens humanos. Não têm panelas e, para cozinhar o que querem comer, enchem meia cabaça grande de água e põem muitas pedras no fogo. Quando vêem que as pedras estão ardendo, eles as pegam com tenazes de pau e as colocam na água da cabaça, até que a fazem ferver. Quando a água está fervendo, colocam o que querem comer e enquanto cozinha ficam tirando as pedras e pondo outras mais quentes.

Cabeza de Vaca, 1400-?  

Naufrágios e Comentários/ Álvar Nuñes; Tradução de Jurandir Soares dos Santos. Porto Alegre: L&PM, 1999, p 112-114.

sábado, 15 de fevereiro de 2025

Indígenas escravizados no Brasil

O Brasil não possuía a quantidade de ouro ou prata do México ou do Peru nesses primeiros anos, mas os colonos verificaram que o clima era excelente para o cultivo do açúcar, o qual alcançava bons preços na Europa. Durante a década de 1540, instalaram-se engenhos de açúcar nos vários lugares em que os colonos portugueses estavam tentando estabelecer-se. Cada engenho exigia trabalho pesado: abater a mata, eliminar a vegetação rasteira, criar gado, canalizar água para os moinhos, construir os próprios engenhos. Uma vez funcionando, os engenhos continuavam a necessitar de muitos braços para cortar a cana, moê-la e proceder à fermentação. Tratava-se de um trabalho árduo, que os índios se recusavam a fazer. Derrubar a mata e preparar a terra para o plantio era uma coisa, mas cortar a cana, operar as moendas e cozer o melaço era uma tarefa brutal. Os colonos não usavam a habilidade dos índios na caça, seu conhecimento da floresta e sua capacidade de manejar o arco. Eram considerados trabalhadores agrícolas, tarefa que entre eles incumbia às mulheres. Além disso produziam um excedente incompreensível e desnecessário, muito mais açúcar do que os colonos e os próprios índios necessitavam. Fernão Cardim escreveu que cada engenho empregava cem ou duzentos escravos. “O serviço é insuportável, sempre os serventes andam correndo, e por isso morrem muitos escravos”. Os lucros dos proprietários eram elevados. “Os encargos de consciência são muitos, os pecados que se cometem neles não têm conta [...] bem cheio de pecados vai esse doce “.

Os índios se recusavam a executar esse trabalho por qualquer forma de pagamento que fosse ou por qualquer quantidade de mercadorias. Tudo o que se referia ao trabalho nos engenhos era alheio à sua natureza. Eles não tinham interesse no lucro e nenhuma ambição quanto à riqueza material. Não gostavam do trabalho físico e eram solicitados a executar um trabalho que cabia às mulheres. Os índios se orgulhavam da generosidade, da hospitalidade e compartilhavam o que tinham com os membros de sua família ou tribo. A ideia de trabalhar para os outros era, portanto, abominável. A planta que lhes solicitavam que cultivasse era-lhes desconhecida, importada do Caribe e de valor limitado. O conceito de trabalhar durante horas prolongadas, expostos ao calor do sol, sem tempo para relaxar e gozar os prazeres da caça ou da vida em comunidade era intolerável. Em consequência, os colonos só poderiam obter mão-de-obra para seus engenhos pelo uso da força, e eles se voltaram naturalmente para a escravidão, numa época que a aceitava como uma das condições do homem.

 

John Hemming (1935-)


 

Ouro vermelho, a conquista dos índios brasileiros. Tradução de Carlos Eugênio Marcondes de Moura. São Paulo: Edusp, 2007. p 84-85.