Gilberto Gil e Milton Nascimento
Canta Mônica Salmaso
Coletânea de excertos sobre as várias faces do trabalho, escolhidos a partir de muitas e prazerosas leituras de textos literários e afins (com algumas ilustrações)
[...] No outro dia seguimos adiante, indo a outra casa, onde comiam as mesmas coisas, mas onde já apresentaram uma nova maneira de nos receber. Estes [indígenas] não vieram ao nosso encontro, simplesmente colocaram o que queriam nos dar no meio da casa e sentaram-se em volta, virados para a parede, com a cabeça baixa e os cabelos cobrindo os olhos. Daqui em diante, começaram a nos dar muitas mantas de couro. Aquela era a melhor gente que encontráramos até então, quanto ao corpo, vivacidade e habilidade. Eram os que melhor nos entendiam e que melhor nos respondiam a tudo que perguntávamos. Nós os chamamos de “o povo das vacas”, porque é ali que mais tem esse animal. Perguntamos a eles de onde haviam trazido o milho e nos disseram que viera de onde o sol se põe. Aproveitaram para contar que nos dois últimos anos haviam enfrentado grande seca, que arruinou quase toda a colheita [...]
Sem saber o que faríamos e que caminho pegar
que fosse mais proveitoso, ficamos dois dias com eles. Davam-nos feijão e
cabaça. A maneira deles cozinharem as cabaças era tão nova que quis descrevê-la
aqui para que se conheça como são diversos e estranhos os talentos e
habilidades dos homens humanos. Não têm panelas e, para cozinhar o que querem
comer, enchem meia cabaça grande de água e põem muitas pedras no fogo. Quando
vêem que as pedras estão ardendo, eles as pegam com tenazes de pau e as colocam
na água da cabaça, até que a fazem ferver. Quando a água está fervendo, colocam
o que querem comer e enquanto cozinha ficam tirando as pedras e pondo outras
mais quentes.
Cabeza de Vaca, 1400-?
Naufrágios e Comentários/ Álvar Nuñes; Tradução de Jurandir Soares dos Santos. Porto Alegre: L&PM, 1999, p 112-114.O Brasil não possuía a quantidade de ouro ou prata do México ou do Peru nesses primeiros anos, mas os colonos verificaram que o clima era excelente para o cultivo do açúcar, o qual alcançava bons preços na Europa. Durante a década de 1540, instalaram-se engenhos de açúcar nos vários lugares em que os colonos portugueses estavam tentando estabelecer-se. Cada engenho exigia trabalho pesado: abater a mata, eliminar a vegetação rasteira, criar gado, canalizar água para os moinhos, construir os próprios engenhos. Uma vez funcionando, os engenhos continuavam a necessitar de muitos braços para cortar a cana, moê-la e proceder à fermentação. Tratava-se de um trabalho árduo, que os índios se recusavam a fazer. Derrubar a mata e preparar a terra para o plantio era uma coisa, mas cortar a cana, operar as moendas e cozer o melaço era uma tarefa brutal. Os colonos não usavam a habilidade dos índios na caça, seu conhecimento da floresta e sua capacidade de manejar o arco. Eram considerados trabalhadores agrícolas, tarefa que entre eles incumbia às mulheres. Além disso produziam um excedente incompreensível e desnecessário, muito mais açúcar do que os colonos e os próprios índios necessitavam. Fernão Cardim escreveu que cada engenho empregava cem ou duzentos escravos. “O serviço é insuportável, sempre os serventes andam correndo, e por isso morrem muitos escravos”. Os lucros dos proprietários eram elevados. “Os encargos de consciência são muitos, os pecados que se cometem neles não têm conta [...] bem cheio de pecados vai esse doce “.
Os índios se recusavam a executar esse
trabalho por qualquer forma de pagamento que fosse ou por qualquer quantidade
de mercadorias. Tudo o que se referia ao trabalho nos engenhos era alheio à sua
natureza. Eles não tinham interesse no lucro e nenhuma ambição quanto à riqueza
material. Não gostavam do trabalho físico e eram solicitados a executar um
trabalho que cabia às mulheres. Os índios se orgulhavam da generosidade, da
hospitalidade e compartilhavam o que tinham com os membros de sua família ou
tribo. A ideia de trabalhar para os outros era, portanto, abominável. A planta
que lhes solicitavam que cultivasse era-lhes desconhecida, importada do Caribe
e de valor limitado. O conceito de trabalhar durante horas prolongadas,
expostos ao calor do sol, sem tempo para relaxar e gozar os prazeres da caça ou
da vida em comunidade era intolerável. Em consequência, os colonos só poderiam
obter mão-de-obra para seus engenhos pelo uso da força, e eles se voltaram
naturalmente para a escravidão, numa época que a aceitava como uma das
condições do homem.
John Hemming (1935-)
Ouro vermelho, a
conquista dos índios brasileiros. Tradução de Carlos Eugênio Marcondes de
Moura. São Paulo: Edusp, 2007. p 84-85.